quinta-feira, 2 de novembro de 2017

‘Segredos de liquidificador’ em sala de aula

Na minha frente, apresentando a análise de peças gráficas, um aluno treme, em sala de aula. Mais correto seria dizer: o aluno vibra, seu corpo estremece e se mostra em uma emoção alterada. O jornal, em sua mão, objeto empírico da análise, vai mostrando, ‘traidor’, que esse ser estudante tem a emoção à flor da pele. Ao mesmo tempo, ao falar, ele esboça um riso de quem se sente satisfeito pelas ‘descobertas’, pelo que pode enunciar de saber construído. Ele tem a emoção de aprender, assim, ali, visível aos nossos olhos, com um corpo que vibra, independentemente de sua vontade consciente. Eu me lembrei da canção "Codinome Beija-flor", de Cazuza, especialmente pela expressão "Segredos de liquidificador"!

Fiquei pensando que também a educação, o conhecimento, quando vividos com amorosidade e intensidade podem emocionar e nos desafiar como seres inteiros, com nosso ‘corpo vibrátil’, para lembrar um conceito da Esquizoanálise, uma das teorias que estudo. A emoção é diferente, da referida pelo poeta Cazuza, mas também é avassaladora e mobilizadora do conjunto do ser, feito corpo, alma e mundaréu de afetos. Somos seres complexos, em corpos que vibram e entram em sintonias com energiais circundantes e transversalizantes. E essa vibração não segue ou serve ao intelecto, nem se limita à materialidade do corpo, em si, mas diz respeito ao que nos emociona, o que nos põe vivos, o que nos transversaliza de emoção ‘derramante’, que nos mobiliza como seres inteiros e nos põe prontos para nos mostrar, nos entregar, de alguma forma. 

Nesse sentido, o encontro amoroso, com a emoção de quem encontra o outro e se emociona por isso, assim como a apresentação de um trabalho, a aula, a palestra, são situações que podem nos colocar em condição de estremecimento, de alteração nas vibrações emocionais e físicas, a tal ponto que isso transpareça, se faça visível. Isso ocorre em cada momento em que nos ‘enviamos’ para o outro, nos expomos, nos dispomos para, na entregar, sermos tocados pelo corpo ou pelo olhar do outro. Quando a situação nos emociona grandemente, nosso corpo vibra e, às vezes, essa vibração se expressa em tremor, em vida que jorra, nas suas variações, em riso, em choro, enfim...

Eu me lembrei também de outra canção, essa de Caetano Veloso, intitulada Força Estranha. Na letra da música, ele diz: “Eu vi um menino correndo/ Eu vi o tempo brincando ao redor/ Do caminho daquele menino”. E nesse momento, eu também vi o tempo, o tempo de docência, outros tantos meninos-moços, como aquele que, emocionado, apresentavam seu trabalho, com esforço e alegria. Lembrei-me de alguns, em especial, preparando-se para as primeiras apresentações de pesquisa, esforçando-se para se mostrarem corajosos e, com a voz embargada e certo estremecimento, mostrando a mim e a si mesmos a emoção de crescer e aprender, de se mostrar em cenas mais desafiadoras. Emociona-me o fato de que, sendo educadora, eu acompanho seres em processo de construção de projetos de vida, seres que investem muito mais que dinheiro e tempo; investem sua emoção, sua esperança e a si mesmos, inteiros, na construção de um devir vida, que os sustente existencialmente, em sentidos vários.

Fico pensando no compromisso e nas marcas que, como educadores, deixamos nessas estradas existenciais singulares e no quanto é necessário investir em amorosidade, acolhimento, bons afetos, nos processos de aprendizagens para que eles sejam geradores de alegria e potência de vida, pautada pela confiança amorosa, pela construção de autoestima e humildade, ao mesmo tempo. Fazer pontes entre as trajetórias que os trouxeram até nós e as novas estradas que se abrem. Ao mesmo tempo, compreender que é tudo construção conjunta, que a produção é resultado dos entrelaçamentos de saberes, das histórias de vidas todas que se encontram e que a transformação é ecossistêmica. Assim, também sinto que sou eu também que estremeço e umedeço o olhar com meu aluno que treme, com o jornal nas mãos.

Assim, nessa condição emocionada, lembrei-me também de Rubem Alves e do lindo livro Variações sobre o Prazer. Entre tantas bonitezas, ele afirma que o corpo sabe sem saber, e resgata o personagem Riobaldo, de Guimarães Rosa: “O corpo não traslada, mas muito sabe, advinha, se não entende” (p.77). Gosto também quando ele nos desafia a encontrar as crianças em cada um, pois a crianças sabem lidar melhor com as “caixas de brinquedos” enquanto os adultos, tantas vezes, ficam restritos às “caixas de ferramentas”. Assim, vale igualmente o pensamento do poeta Manoel de Barros, quando diz que “a palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo para ser séria”. Penso que isso é pertinente para a educação também, que precisa mobilizar afetos profundos. Para tanto, precisa fazer com que o sujeito se sinta em processos de brincadeira séria e, assim, se permita emocionar-se, revolucionar-se, crescer, ameninando-se, vibrando e, se preciso for, estremecendo com as experiências de se entregar, de se mostrar, de ser fazer seres em processos de autopoiese, de reinvenção de si mesmos.