domingo, 30 de abril de 2017

CONVOCAÇÃO PARA A PAZ ENTRE AS LEOAS!



A urgência do tempo, em alguns sentidos, tem me conduzido a refletir mais sobre, afinal, o que querem essas leoas em mim? Por que elas brigam tanto? Que tempo é esse que ainda tenho, para viver às turras, internamente, com os desassossegos tantos, entre essas ‘criaturas’ fiandeiras do meu destino. Para quem não sabe, as leoas são minhas versões de garra e luta, em diferentes instâncias da vida, de diferentes modos. Quem me conhece, nem sempre conhece todas as leoas... Costumo dizer que cada um tem a leoa que conquistou. Elas são, em certa medida (sem medida certa!) manhosas, dengosas, birrentas, bravas (no sentido italiano de valentia e no sentido brasileiro de fúria, às vezes. Em suma, melhor não provocar!). Claro, são também ternas, amorosas, sim, muito amorosas. Isso, todas são.  Cada uma a sua maneira.

Há pouco tempo, tive um indicativo de diagnóstico – que não se confirmou, após uma biópsia! – de uma doença grave, lenta e silenciosa, dessas autoimunes. No caso, a explicação da tal doença dizia que, por motivos desconhecidos, algumas células começavam a matar as outras ‘por engano’. Pensei imediatamente nas brigas das leoas internas, a Maria Luiza, a Malu, a Luiza, a italiana, com as tentativas, nem sempre bem sucedidas da Dra Cardinale, no sentido de acalmá-las.

Apesar da situação nada boa, nem alentadora, comecei a achar certa graça da situação. Tantas vezes conversava comigo mesma e com minhas células e dizia... “Olha, vejam só, vocês se conhecem há tanto tempo! Vão começar a se matar agora?”. E, em seguida, imaginava as células ironizando: “ Ops, desculpe, te matei né? Desculpa, tá, fica aí mortinha!”. Com alguns amigos mais preocupados comigo, amigos chegados, que estão mais por perto no cotidiano, eu comentava isso, até como uma forma de descontrair. Não há porque se ‘pré-ocupar’, numa situação dessas. Penso que apenas devemos nos ocupar... fazer o que tem que ser feito, sem dramas, nem nada. Foi o que tentei, depois do impacto inicial da informação.

Enfim, a situação prolongou-se por praticamente um mês, entre receber a informação de indicativo de diagnóstico e esperar o agendamento de biópsia, fazer a biópsia, aguardar o resultado. Uff! Tudo isso fazendo tudo que faço, em meio ao gerenciamento de uma família com cinco filhos, a vida nas universidades UCS-UFAM, os orientandos, aulas, clientes de supervisão de textos da Pazza Comunicazione, tudo urgente, tudo com prazo-lâmina, com eu costumo chamar, tudo pedindo atenção, em um tempo em que eu precisei de tempo de reflexão, para construir calma interna, até mesmo para abrir agendas para consultas, exames, agendamento disso e daquilo. Eu, literalmente, não tenho tempo (nem paciência!) para adoecer, nem para falecer. Lamento.

Foi tempo suficiente para compreender a grandiosidade da vida e da velocidade do tempo em que ela passa. Também foi possível pensar o que quero e o que não quero. Pensar que são verdadeiramente poucas as coisas pelas quais devo brigar, ficar brava. Resolvi, eu mesma, finalmente, aderir à campanha que lancei com meus filhos – também os filhos acadêmicos – brincalhonamente, há tanto tempo, cujo slongan é: “Preserve Malu, antes que acabe!”. Eu sempre argumentei: “Sim, há tantas campanhas ecológicas de preservação de seres em extinção. Por que não eu?!”. Enfim, esse é um dos meus traços, brincar comigo mesma, fazer graça, como alternativa, até porque pelo que vivi, se não tivesse feito isso, não tinha aguentado.

Enfim, tudo isso me fez abrir um chamado interno para a paz,  a paz das leoas. Não. Não é nada fácil. Nenhuma delas é ‘morna’, nenhuma é  simples. Cada uma delas representa um modo meu de levar a vida e todas querem ter voz em mim, sendo que nem sempre suas vozes combinam. Geralmente não combinam. Enfim, todos os acontecimentos recentes, as pressões e transformações do cotidiano, resultaram na fala da doutora, no sentido de que, com o tempo passando, já é tempo dessas leoas serenarem, cultivarem a paz, ainda que sem concordância. Enfim, muita coisa não importa mais. Não vai dar tempo mesmo de fazer tudo o que eu desejo, porque eu sempre desejei muito. É preciso aprender a abrir mão do que desgasta, do que não rende calma, paz e alegria, principalmente confiança amorosa. As leoas são a minha natureza. Com elas convivi todo esse tempo. O encontro com a natureza, para mim, é sempre o encontro com a matriz de força e, ao mesmo tempo, com a minha poética. Respeito isso, sigo buscando respeitá-las, cada uma a sua maneira, fazendo graça com a choraminguice da leoazinha Luiza, tendo paciência com a impetuosidade da Malu e com a ranzinzices perfeccionistas da Maria Luiza, assim como dando espaço para a intensidade vulcânica da italiana. Assim, diante de tudo e depois de tudo, proponho um Tratado de Paz, entre elas... vamos ver quanto tempo dura!

Bem, pra quem não advinhou ainda quem está escrevendo, assino: Dra Cardinale.


sábado, 15 de abril de 2017

PAREDES DE HOSPITAL SÃO TELAS DE MEMÓRIA!

A experiência de ir a um hospital pode significar um episódio existencial curioso, ainda mais se temos o ‘defeito de fabricação’ de sentir, observar, refletir de modo intenso sobre tudo. É o meu caso: tenho a mania de ‘mergulhar na cena’, com a intensidade de quem se investe do personagem de um roteiro construído para ganhar prêmios. A lógica é a seguinte: se é pra viver, entrar em cena, então vamos ‘na base da plenitude’, vamos com tudo. Parabéns, Maria Luiza, em geral, isso é bom, mas, às vezes, também, traz uma avalanche de sentimentos com a qual é preciso lidar. É o caso do que pude entender, quando me veio à mente a tal frase: “Paredes de hospital são telas de memória!”.

Estive recentemente no hospital da Unimed, em Caxias do Sul, para um 'procedimento' relacionado a minha própria saúde. O procedimento é razoavelmente simples, mas envolvia cirurgia, frequentar o centro cirúrgico, portanto, e passar por toda a parafernália de preparação, até usar aquela ridícula camisola aberta atrás, associada a uma touca de cabelos e sapatos de panos. Quer dizer, o quadro da dor, por ficar meio ‘coisificada’, numa espécie de ‘boneco humano’, que vai passar por um ‘procedimento’. Não há como se sentir confortável numa cena dessas.

Pior, me pediram para tirar os óculos. Gente, eu sou muito míope. Sem óculos, fico entregue a um mundo embaçado. Lembro de um professor da USP, Eduardo Peñuela Canizal, da disciplina de Poética das Mensagens Não-Verbais. Ele dizia: “na imagem, as zonas de não nitidez são espaços de encontros com o inconsciente”. Bom, no meu caso, sem óculos, tudo o que eu vejo são zonas de não nitidez, quer dizer, a possibilidade de encontro com o inconsciente é 100%. 

Bom, além disso, há o tempo de espera e, claro, as paredes. Não sei se alguém já pensou nisso, mas as paredes de hospital, nesses tempos de espera ganham vida. Pior que isso: ganham vidas passadas. São telas de memória. Eu tive o ‘privilégio’ de passarem um paciente na minha frente e, em função disso, tive mais tempo para ‘assistir às paredes’. Experiência forte. O tempo de espera me permitiu rever, na tela de memória, muita gente e muitas cenas vividas. Claro que, na brotação de memórias, eu reconheço uma edição dos momentos, pela intensidade de afetivação. Brotaram, na tela parede, momentos bons e ruins. Momentos da batalha da vida, quase constante, e dos hiatos significativos de felicidade plena, os momentos de maior expressão amorosa. Penso que é disso que é nutrida minha passagem por aqui. 

Sim, foram os amores que ganharam mais espaço e desfilaram na tela, nas diversas situações. Amores diversos e de diversos tipos. Fui sentindo, observando e refletindo o quanto o amor se mostra de diferentes maneiras e se associa, nesse sentido, a diferentes pessoas, nos múltiplos momentos da vida. Eu sou profundamente grata por todos os momentos e seres que me ensinaram e possibilitaram a viver o amor, em suas múltiplas expressões. Disso, fiz meu sustento existencial, no que é, para mim, o principal alimento, a confiança amorosa! Claro que, nem tudo são flores, nem mesmo nos episódios amorosos. Nem sempre os desfechos correspondem à proporção do sentimento investido, porque  o amor não segue a lógica do mercado financeiro, amarrado com controles rígidos. Vale dizer, que mesmo esses mercados estão sujeitos a intempéries e tempestades que, tantas vezes, parecem devastar tudo. Com o amor, não é diferente.

Sinto, no entanto, que o amor tem mais a ver com a agricultura, com o aprendizado do cultivo da natureza e poética de semear e ser semeado, com o encanto de sentimentos profundos. O amor parece ir penetrando as camadas mais fundas de nós mesmos, instalando-se, espalhando-se, fazendo-se dono do corpo físico e abstrato. O amor, o amor messsmoo, atinge camadas profundas da alma, do nosso espírito. O amor não fica na superfície. Não é rápido, não é fugaz. Não há tempo, não há acontecimento, não há tempestade que desfaça o que atingiu os substratos profundos. Bah!

Diante da tela da memória, então, fui revendo a vida toda. Emocionada comigo mesma, num tempo raro de parar e deixar-me estar ali, ‘re-vendo’ tudo. Também pude reforçar algumas percepções que já tinha: tudo é muito rápido. A vida passa muito rapidamente. Altera-se, com o tempo, a própria noção de tempo e a constatação de que ‘a vida inteira’ é uma sequência de flashes. Há que se viver mesmo, intensamente, porque, quando se vê... já se foi. Isso reforça, em mim, a valorização do estar junto, da preciosidade que é cada instante de estar junto às pessoas que amo.

Mais que nunca, esse é o meu grande desejo e investimento existencial, sempre que possível, especialmente como desejo compartilhado: conviver, viver com, ‘com-viver’. Como eu disse esses dias, para um dos meus filhos, é preciso saber reconhecer onde estão os portos-seguros, o resto é tudo ‘viagem’! 


domingo, 2 de abril de 2017

Desapego aos ‘parágrafos’, no texto e na vida!

Nesta semana, em uma das orientações, um detalhe me chamou a atenção: um parágrafo insistente, meio que encrustado no texto da minha aluna, desses que se negam a ir embora. Sim, o parágrafo não estava bem ali, era visivelmente algo que atrapalhava o fluxo do texto. Eu tinha tentado sinalizar para a pesquisadora. Cuidadosamente, propus que aquela lógica de escrita fosse aproveitada e que ela iniciasse o texto com sua experiência pessoal, que ali estava inscrita, mas que adaptasse à condição vivida na pesquisa, que seria interessante e tal e tal. Entendi que havia uma força, uma energia naquela ideia. Ela sorriu satisfeita. Na orientação seguinte, trouxe o parágrafo deslocado, mas, quando fui ver, estava ele ali, intacto, ‘imexível’, firme, como quem diz: “daqui não saio, daqui ninguém me tira”. Ele, o parágrafo, ‘em pessoa’, digamos assim. Bem, foi daquelas situações em que se tem que parar tudo e conversar sobre o assunto, no caso, sobre a necessidade de desapego aos parágrafos, no texto e na vida.

Desde minha pesquisa na USP, sobre processos de escrita de jovens adultos, como expressão da subjetividade e da relação com os meios de comunicação, tenho muito claro o quanto o texto é uma trama que expressa outras tramas mais profundas, mais densas, internas e externas. Então, o que está ali, inscrito, não apenas significa pelo conteúdo, mas também representa um processo de inscrição, em que o sujeito vai se marcando, inscriacionando, ins-cria-acionando e se entregando ali, marcado, com suas marcas profundas.

O que me interessa refletir, neste texto, no entanto, é menos o texto da minha orientanda e mais a ousadia dos parágrafos que insistem em não ir embora. Sim, porque, os parágrafos representam núcleos de ideias, blocos de pensamentos. Assim devem ser. Então, acontece, muitas vezes, que temos alguns parágrafos-blocos de pensamentos que se constituem com tanta força, que parece que se grudam em nós mesmos, como se parte de nós fossem e, pronto, se tornam, eles mesmos, parte de nosso corpo, do nosso jeito. Quando vemos, estamos de novo dizendo o mesmo trecho de texto, refazendo o mesmo enredo, revivendo a mesma trama. Culpa de quem? Culpa de quem? Dos parágrafos, que não vão embora de nós. Sim, preciso agradecer minha orientanda que, com seu ‘parágrafo teimoso’, me ajudou a perceber isso tão claramente.

A gente passa a vida tentando seguir Viagem, inventar o próprio destino, ser sujeito do próprio texto e, quando vê, há um parágrafo, um especialmente – há outros encrustados nos meandro internos, mas um deles com mais força – que insiste. Se você resolve fazer outros caminhos narrativos, não adianta, quando vê, ele despenca na sua frente e vai se imiscuindo no texto, meio rindo, se fazendo de desentendido, e pronto. Está ele ali de novo, majestoso, no seu texto cotidiano. Sem constrangimento. Eu já devia ter percebido isso. Não sei como a Madeleine, minha personagem que se diz esperta, não me alertou. Um parágrafo que deve fazer parte de um grupo internacional de parágrafos, que se dedicam especialmente a perseguir pobres escritoras desavisadas e reaparecem frequentemente como fantasmas, como corpos extraterrenos, como espíritos vindos de vidas passadas e se colocam diante de nós em praças, ruas, dentro dos ônibus, na universidade, nos lugares os mais diversos.

Claro, eu reconheço, os ‘parágrafos’ insistentes têm seus encantos. Não fosse assim, não vingariam como parágrafos-grude-na-memória. Esse é verdadeiramente um dos seus problemas (e dos meus!). Mais que nunca, percebo que escrever é como viver; escrever para mim é minha própria vida. Então, vou seguir, por aqui e ali, escrevendo enquanto posso, tentando reconhecer os incidentes dos parágrafos esses, agradecê-los todos, porque têm graça e alegria, mas também seguir inscriacionando-me de outras maneiras e produzindo parágrafo novos.

No mais, recomendo refletir sobre os parágrafos insistentes, sobre as causas disso, sobre o quanto que, de certa forma, contribuímos, para que esses blocos de pensamentos, fiquem ali e aqui dentro de nós.  Entendo que a trama da vida é complexa. O enredo do nosso destino é escrito por um Autor maior, que parece, às vezes, brincar conosco e, quase sempre, nos desafiar, oferecendo situações que nos põem à prova. A volta e revolta e insistência dos parágrafos esses deve estar ‘no pacote’ de experiências previstas, pelas quais devemos passar. Fico pensando: como vamos ‘sobre-viver’ aos parágrafos insistentes, no plano do bloco de pensamentos e nas microssituações cotidianas em que eles reaparecem? Como vimos e vivemos, não há respostas, só texto a ser produzido, de novo, todos os dias, só a Viagem ainda em andamento... é um exercício constante. Vamos adiante, então, que o caminho é longo e vamos de mãos vazias, com os parágrafos já escritos e vividos, no coração e na mente. Uff e que bom, ao mesmo tempo! Sempre é tempo de tentar aprender a lidar com parágrafos cristalizados no substrato profundo de nós mesmos! Eu espero que seja assim, ao menos.