sexta-feira, 30 de dezembro de 2011


Que lugar é esse ‘eu’?
Lugares, territórios, cantos existenciais

Nesses dias, em Porto Alegre, tenho vivido o estranhamento de voltar pra casa. Sim, moro nesta cidade, mas agora também moro em Caxias do Sul. Desde março, comecei a estruturar um apartamento lá, um lugar, um canto, uma morada, um novo território existencial. No começo, foi tudo muito difícil. Consegui um apartamento em um lugar ótimo da cidade, bem localizado, com boa iluminação, mas sem n a d a dentro, nem pia na cozinha... nem tanque, na área de serviço. Tudo a fazer, tudo a ajeitar. Tarefa árdua, pra uma mulher femininamente incompetente para fazeres domésticos ligados à eletricidade, instalação de móveis e eletrodomésticos... varaus... tudo... absolutamente tudo tem que ser pago. Contratar ‘homens’ para fazer os serviços, para os quais sou assumidamente incompetente. Sei que há mulheres que conseguem fazer também esses serviços... eu não. Meu universo de competências é outro.

“Tudo aconteceu muito rápido”, me disse, uma vez, uma pessoa especial pra mim. Sim, muito rápido. Tive que ir vivendo, sozinha, o turbilhão do concurso, a aprovação, a ‘comemoração’, as decisões que precisavam ser tomadas, a conquista do apartamento, primeiros momentos dormindo no chão, mas já com um território existencial em construção. No apartamento, acima da porta, uma pista importante, de que a mudança era pra melhor: uma fotinho, um xerox da imagem de Jesus Cristo tinha sido deixada lá, pela dona do apartamento, a antiga moradora. Olhei pra ele. Sorri e disse: “Tá, entendi que você escolheu! Entendi que você está comigo. Não vou ter medo!”. Na verdade, eu queria não ter medo, mas eu tenho que admitir. Tive muito medo. Não há como ser chefe de família, com quatro filhos, sozinha pra dirigir uma família e uma empresa e não ter medo de fazer mudança. Eu chorei muito, sendo que, depois disso, todas as vezes tive que me levantar e seguir adiante. Acionar o motor prático operacional e fazer o que tem que ser feito. Cheguei jornalista, com as aulas da UCS iniciando, cinco turmas novas, disciplinas novas: computador com internet, rádio, televisão, celulares, duas malas e... colchonetes. Assim, podia trabalhar. Nos primeiros dias, o único lugar pra sentar era o vaso do banheiro. Patético. Engraçado, quando vira história.

Em muitos momentos, malucamente, eu me desorientava na cidade nova. Não sabia direito as ruas, a parada de ônibus pra descer, à noite, na volta da UCS. Perguntava quinhentas vezes. A resposta era sempre a mesma: uma parada depois do hospital Pompeia. “Mas, Meu Deus, onde está o tal de hospital?”, eu pensava. Eu sequer conseguia ver o hospital, porque a frente dele é na avenida Júlio e o ônibus circula na Pinheiro. Então, não me dava conta que a tal de referência era, na verdade, ‘os fundos’ do hospital. Pensava: Que incrível isso, eu não enxergar um hospital. Literalmente, ficava com medo que estivesse valendo a máxima popular: “Você não enxerga nem um palmo, diante do seu nariz!”. Pra algumas coisas, acho que demoro um pouco mais a enxergar mesmo. O lado bom é que fiz amizade com a cobradora e o motorista – já que eu sempre pegava o ônibus no mesmo horário. Uma noite, distraída, esqueci de descer e, quando me dei conta, sentada no fundo do ônibus, comecei a escutar o motorista dizendo: “Mas ela não vai descer? Essa é a parada dela!” A cobradora respondeu: “Não sei, vou perguntar”. Em resumo: eles já me conheciam. “A professora jornalista!”. Já tinha me inserido no lugar, ônibus Cinquentenário, que me deixa em frente de casa, a Casa de Caxias.

Miopia elevada à potência ‘n’. Miopia emocionada. Putz.. aí não há Maria Luiza que me defenda. Eu me mobilizei, em função do amor. Amor por uma pessoa. Amor pelos meus filhos e minha profissão. Amor e desejo de construir uma nova realidade profissional e pessoal. Sim, depois de quase um ano, eu consegui isso. Consegui como foi possível. Consegui, cuidada por novos amigos, por pessoas lindas e carinhosas, que foram me acolhendo. Pessoas que olhavam pra mim e foram compreensivas com minhas (tantas) limitações de novata no lugar, no novo território existencial. Pessoas que se ofereceram para ajudar. Pessoas que foram se tornando minhas cúmplices, no cotidiano. Filhos, alunos, amigos, colegas, queridos amados funcionários da UCS, gente da melhor qualidade. Em momentos extremos, nem sempre a ajuda vem de onde se espera, mas se existe uma determinação justa, do bem, amorosa, acredito que é possível avançar. Foi assim que segui.

Assim fui construindo a ‘casa de Caxias’. Ela é diferente da de Porto Alegre. A de Porto Alegre é mais bem estruturada, é maior e tem mais cantos e recantos. Tem mais história também. Histórias alegres e tristes. Algumas muito tristes. Tremendamente tristes. A casa não tem culpa. Nada e ninguém tem culpa. Eu tento, há anos, também, me ‘des-culpar’... em parte aprendi, ao menos em parte. Mas, acostumada à sensibilidade extrema, ao encantamento do mundo e a esse olhar que se entrega enamoramente para cada lugar e pessoa, eu reconheço narrativas existenciais de outros tempos, revejo-as, relembro, ‘re-avivo’ algumas que gostaria que retornassem e outras que... nem pensar! Talvez a Maria Luiza tenha razão. Estou bêbada de afeto e poesia. Sim, o que ela mais tem é razão! Mas nem só de razão vive a Malu, a racionalidade me completa, mas, certamente, não é minha única substância constitutiva... eu vivo mais do amor imenso!

A Casa de Caxias é um sopro de vida nova. Montada em parte com coisas que levei de Porto Alegre, escolhidas, selecionadas, para romper com a condição de ‘acampamento inicial. Depois, chegaram coisas novas, móveis novos...também tudo escolhido com cuidado, de migrante, de quem chega em uma cidade nova, para ‘fazer a vida nova’, ou seja, economicamente. Na minha italianidade, pensava no que teria sido a imigração dos meus ancestrais... Meu Deus... começar vida nova em um lugar tão perto de Porto Alegre, voltando pra lá todas as semanas, mantendo a casa montada já estava sendo tão difícil... mas imagina o que teria sido deixar a ‘nostra Itália’... o porto de Napoli... a família toda. Eu tenho vontade de chorar, só de pensar nisso.

Giuseppe e Chiara foram morar comigo, depois de maio. Novos desafios. A sensação de vê-los chegando na escola nova. Olhares curiosos. Ansiedade estampada no rosto. Ao mesmo tempo, desejo de que tudo começasse logo e o medo de que não gostassem. Eu sabia que era uma mega mudança, para eles também. Amigos novos, professores novos. Novos territórios subjetivos. Pela proporção das minhas dores, temia pelo que sentiriam e pela insegurança de não conseguir acalmá-los, quando a saudade viesse, as diferenças entre um lugar e outro se sobressaíssem. “Em uma mudança, filha, a gente ganha e perde, ao mesmo tempo. É preciso aprender a valorizar mais o que se ganha e ter paciência com o que se perde. É assim”, foi o que eu disse, um tempo depois, para a Chiara, minha filha caçula. É o que eu aprendi, com as mudanças, na vida. Espero seguir consolidando esse aprendizado, em mim, nesse território existencial nômade, em trânsito...cuja casa, neste ano, foi também a estrada Caxias-Porto Alegre, as árvores, as curvas, o movimento, a busca, o encontro, o desencontro, a despedida, o riso, o choro, a noite, o dia, o vento.... o amor, sempre o amor!.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Encontro de leoas 6




Maria Luiza: Ahhhhhhh! Então quer dizer que você vai querer terminar o ano de onde começou? Nada aconteceu? Você enlouqueceu ou está só fazendo de conta?

Malu: Calma. Calma. Para tudo existe uma explicação. Risos. Foi só um descuido, me distraí.

Maria Luiza: Certo. Certo. Um pequeno descuido e você quer se deixar soltar no mar de afeto aquele... Me diz: onde você se doutorou em tonta? Qual é a universidade que tem doutorado nisso?

Malu: Mas criatura, você está cansada de saber que me doutorei em Ciências da Comunicação, pela USP. Quase me matei estudando pra isso.

Maria Luiza: Tá, mas não é o que parece. Estou cansada é de te ver derrapando e caindo sempre na mesma armadilha, sempre o mesmo tipo de afeto te pega, te toma, te mobiliza e te põe maluca de verdade.

Malu: Não. É que o afeto esse é... lindo! Moreno. Risos. Mas você tem que admitir. Estou mais madura. Passei o ano todo na minha. Quieta. Quase quieta. Tá. Não muito quieta, é verdade. Na minha condição de pessoa livre, solteira. Amorosamente apaixonada pelas pessoas. Sem compromisso. Não sozinha. Mais recentemente é que as coisas têm se transformado... Também, olhos verdes são irresistíveis. E não são olhos quaisquer... são olhos do.. bem, você sabe.

Maria Luiza: Pois então, segue o baile da transformação das coisas. Não empaca, não recua.

Malu: Mas quem diz que tô empacando? O que eu preciso que você entenda é que há alguns amores que constroem, na gente, o que eu chamo de ‘substrato amoroso’. Não há nada que abale. Não importa tempo. Não importa nada. Quando se remexe nele... tudo volta. Tudo brota, sempre com o mesmo viço. Às vezes mais...

Maria Luiza: Ah, mas, como diria, meu filho, tu tá tirando onda com minha cara? Sempre com a mesma idiotice, você quer dizer?

Malu: Onda, onda... mar.. risos... isso me fez pensar em algo... bem..não, quero dizer, não é isso. Sou fiel aos meus sentimentos. Sempre fui. Às vezes, me vem um surto de sinceridade e digo as coisas... Já passei da idade de me importar com picuinhas e não me toques. Se um mar de afeto se remexe.. eu deixo vir... se não é suficiente, não é por isso que ele deixa de existir. Como sou, posso produzir outros mares, mas eles não se substituem, só se acumulam... camadas e camadas de substrato amoroso. Assim, são meus amores que se foram....

Maria Luiza: E que não se foram também?

Malu: Ei, ei, cada coisa no seu tempo. Cada amor no seu momento. Cada um tem seu canto, sua possibilidade e duração. Atualmente só tenho ‘um’ amor. Os outros são de outro tipo. Bem... vale o que disse o poeta sobre a finitude da paixão; a infinitude do que se vive, quando se está junto. A condição eterna do substrato amoroso construído a dois.

Maria Luiza: Ihh.. grave, muito grave. Ela está bêbada de afeto e poesia. Melhor deixar quieta, ver se passa...

Malu: Passa, pode ter certeza que passa, mas demora. Você leva tudo muito a sério...

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Vestido de flores miúdas... e a Madeleine!




Tecido macio, fundo cor de vinho, com flores miúdas, cujos tons variam entre o amarelo queimado e o marrom. Os detalhes das flores são da mesma cor vinho da maior parte do tecido. Há também algumas figuras geométricas, de outras cores, predominando o azul e o verde. Essas mais parecem aquelas imagens, que surgem quando fechamos os olhos com as mãos e ficamos aguardando ... bem, eu sempre fazia isso, quando criança. Agora não tenho feito, porque quase não tenho tempo. O atropelo cotidiano me rouba de práticas prosaicas, como essa e, também, o gosto de usar um vestido de flores miúdas que tenho já há algum tempo. Comprei em Recife, sabe Deus em que ano... era outro tempo na minha vida. Agora gosto mais do vestido. O tecido parece que se acomoda no meu corpo... ‘eles’ se entendem. Meu corpo gosta de quem o conhece. Sempre foi assim.

As flores são imagens que me acompanham, desde sempre. Sou filha de florista, minha família teve uma fábrica de flores no interior de São Paulo, como eu contei em outro texto. As margaridas brancas seguem minha história e até dão nome a esse blog. São imagens singelas... ternas. Outras flores são insinuantes. Têm ternura e sensualidade, ao mesmo tempo. Até hoje, meus arroubos de desenhista se resumem a desenhar flores. Quando vou dar um exemplo, em sala de aula, para falar da construção da significação... vira e mexe acabo desenhando... flores. As flores também expressam bem minha condição feminina. Fêmea e menina.

Às vezes me incomoda a fragilidade, essa ternura e amorosidade exageradas, jeito de menina, mulherzinha... mas, logo depois, percebo que é uma incomodação sem futuro. Não há como mudar a matriz da criatura, a essência da ‘coisa’, sendo que, no caso, a ‘coisa’, sou eu, a coisa Malu. Pra sobreviver e não viver me machucando... dá pra brincar um pouco, apelar para o humor e deixar vir à tona alguns personagens que brotam em mim, como exercício prático de sobrevivência. Foi assim que surgiu a Madeleine.

Eu ainda sei pouco sobre ela, porque seu traço mais forte é a paranóia. Madeleine é uma criatura que passa o tempo todo imaginando conspirações internacionais contra ela. Tanto que não me disse ainda o seu sobrenome e sua cidade de origem. Há coisas que ela não conta nem pra mim mesma. De certo, porque imagina que eu sou a grande conspiradora contra ela, porque a criei. Pelo sotaque, já se sabe que é francesa de nascença, mas vive há algum tempo no Brasil. Olhar arregalado para tudo e todos e sempre pronta a desmascarar um... “plaaaanu”... “uma conspirración internacional”...enfim.. só vendo mesmo.

Certamente, ela passou o dia indignada com o tal vestido de flores miúdas. Deve estar pensando que é um plano meu, para que ela seja vista assim, pelas pessoas, com um vestido envelhecido . Certamente me diria que isso faz parte de uma vontade interna de que ninguém a queira ver. Não... o vestido é bonito, Madeleine. Eu responderia.. mas ela... francesa... acostumada à moda de Paris, certamente se incomodaria com esse singelo vestido de flores miúdas comprado em Recife. Eu gosto. Ele ‘me tem’ hoje... bem confortável, à vontade. Vestido longo, tecido macio.

Eu me diverti muito com a Madeleine esse ano. Seu surgimento ocorreu dentro de um ônibus em Porto Alegre, na volta de uma visita à Casa de Cultura Mário Quintana, quando fui assistir a uma apresentação de dança da minha filha mais velha, a Giulia. Lindo espetáculo. Eu voltei emocionada. Estava com o Pietro, meu segundo filho. Era de noite. Chegamos em frente ao mercado e estava estacionado um ônibus, da linha Santana, com o motor ligado. Bem.. a lógica, quando você chega à parada e tem um ônibus com o motor ligado o que você pensa? Que ele vai sair em seguida. Pois é. Este foi o problema. Entramos e depois de um tempo, a Madeleine apareceu indignada, dizendo que era um ‘plano’ do motorista e do cobrador... para sequestrar uma pobre mãe, com seu filho, na noite de Porto Alegre. Na sua loucura indignada, na sua verborragia despejava uma linguagem afrancesada, marcada pela indignação, por já estar há mais de 10 minutos presa dentro do ônibus. Ela dizia insistentemente ao filho que o motorista e o cobrador faziam parte de uma conspiração internacional contra ela... Daí não parou mais, Madeleine foi aparecendo e brincando com situações do cotidiano que tornam a vida ao mesmo tempo ridícula e mínima...mas que, se não forem tratadas com humor, podem levar a pessoa à irritação, ao estresse.

Um momento marcante foi o encontro de Madeleine e um quero-quero (o pássaro). Eu tinha terminado de dar uma aula no CETEL, um dos prédios da UCS e tinha que ir até o Bloco M, para outra aula. Na ‘subida’, Madeleine se depara com o tal pássaro, ali parado, meio em dúvida, se atravessava ou não a rua. Paramos, eu e ela – que só pra esclarecimento do leitor, somos quase a mesma pessoa... ao menos vivemos no mesmo corpo... puxa... esse suposto esclarecimento talvez o esteja confundindo.. não importa.. não se preocupe... siga o texto que a vida também é assim.. confusa. Enfim, diante do quero-quero (hum, o nome da criatura é sugestivo), Madeleine e eu paralisamos. Eu trazia a lembrança (trágica) da infância de um ganso que me atacou e bicou... bem, não importa onde. Quer dizer, coragem mesmo para enfrentar a tal ave... eu não tinha. Aí...ele, o quero-quero, em dúvida.. ia pro meio da rua e voltava pra calçada.... Palhaçada...Madeleine começa a disparar um discurso afrancesado pro tal pássaro.. na sua linha de que ele também fazia parte de uma conspiração internacional de “quero-queros”, que queriam acabar com a reputação dela... o que os alunos iriam pensar se a vissem com medo de um pássaro e tal... esbravejou que se negava a dar um passo sequer enquanto ele não saísse da frente...O pássaro, lógico, ficou insensível ao desespero da Madeleine – e meu, que tinha um grupo de alunos me esperando e também não queria que alguém me visse falando sozinha. Afinal, o que pensaria????

Bem... o impasse se resolveu com a Madeleine recuando e resolvendo atravessar a rua, aos brados, solta na sua ‘reclamonice’ tradicional. O encontro emblemático com o ‘quero-quero’ acionou a Madeleine. Singela cena e hilária, pra quem viveu. Patética, ao mesmo tempo, se considerarmos a poética. Por que será que o encontro com um ‘quero-quero’, para Madeleine era tão ameaçador....hum....ela vai se debater de raiva...agora. Vamos aguardar ...