segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Encontro de leoas 2



Para quem não leu Encontro de leoas 1, recomendo e aviso... as duas aí abaixo sou eu mesma, fragmentada em meus eus dissonantes, que às vezes digladiam. Superego e ego, Maria Luiza e Malu têm perspectivas diversas da vida, nas suas múltiplas manifestações.

Maria Luiza: Muito bem, Dona Malu... vamos ver onde ficou a empáfia aquela do outro texto. Te achei toda cheia de si, segura e tal... parecia ter certezas absolutas... cheia de teorias....me admirei. Então, qual é o tom do texto de hoje? Vai continuar na mesma linha amor derramado ou vamos mudar o rumo dessa prosa?

Malu: Mas era só o que me faltava! Já não me bastam as agruras do cotidiano, os micos que passo 24 horas por dia, por esse meu jeito, ainda tenho que aguentar uma senhora caquética, típica de superego feito a facão, que vem me dar discurso e ironizar o que eu sinto.

Maria Luiza: Bem, querida, tem que arcar com as consequências dos teus atos. Escolhas. Tudo na vida é resultado de escolhas. Você acredita em tudo, em fadas, duendes, bruxas, em filmes românticos, novelas... até no amor. Acredita no que te dizem, acredita que as pessoas te gostam, acredita nos relacionamentos, em uma sociedade mais justa, nas rodas de amizade, em projetos de união entre as pessoas, acredita na teoria do Maturana, quando ele fala que a cooperação é o natural do ser humano e não a competição. Acredita que é possível resgatar relacionamentos ternos e que o acolhimento humano é algo a ser resgatado. Você acredita mais em quê?

Malu: Mas me diz, criatura, se não for acreditar no amor, vou acreditar em quê?

Maria Luiza: Vampiros? Risos... Papai Noel? Coelhinho da Páscoa?

Malu: Páaaraaa.

Maria Luiza: Olha, eu não peço muito, apenas que você aterrisse. Algo como botar os pés no chão e se dar conta que existe chão. Então, peço o básico, tipo tubinho preto da existência, cultivo ao elemento terra, que pode te oferecer um pouco de racionalidade – já que bastante racionalidade eu sei que nem adianta pedir.. é tempo perdido.

Malu: Falando em chão, você sabe pisar, né? É uma beleza. Tá, venceu no argumento. Você adora isso. Vencer no argumento. Agora eu pergunto: o que isso muda? Que diferença faz, para nós duas que você esteja certa? Se eu estivesse certa seria muuuittto melhor. Na prática, você deveria torcer por mim.

Maria Luiza: Mas você não entende. Não é uma questão de torcer. A vida não é uma partida de futebol. Se fosse um jogo, estaria mais para um jogo de cartas, em que ganha quem percebe os sinais sutis e, principalmente, quem desconfia dos parceiros jogadores, quem entende que existem jogadores experientes, gente que não sente de verdade, que blefa, que não entrega o jogo, como você, que se entrega, como se estivesse se atirando no mar, de um penhasco... Você é uma suicida amorosa, em todos os campos do amor. Acho que por isso você tem medo de nadar...não se arrisca na água, porque teme o elemento água, que representa os sentimentos. Literalmente, não é tua praia.

Malu: Mas como? Você tá doida? Mas é disso o que eu mais vivo...vivo imersa em sentimentos...

Maria Luiza: Ah, não. Não me venha com teu texto meloso, que hoje não estou pra isso. Estou sem paciência. Eu tenho um mundo de coisas para fazer, disciplinas novas para preparar, um livro para fechar a edição – com o processo em um momento em que o resultado não depende só de mim, mas de outras pessoas fazerem sua parte. Tenho um outro livro pra finalizar...artigos para escrever... o projeto das Rodas de Amizade, que você inventou, em produção.. o cotidiano, a Pazza, os clientes, a casa, os filhos.. você não me venha falar de amor....

Malu: Calma, calma.. também não precisa ficar histérica. Não vou falar de amor. Não hoje contigo (depois falo em outro texto de novo.. quando me inspirar, risos).

Maria Luiza: Tô dizendo, você não me leva a sério. Faz brincadeira até com sofrimento e cansaço. A vida toda tá em turbulência, com mudanças grandes em vista e você brincando...

Malu: Tá.. quer que eu faça o quê? Se dramatizo, você reclama. Se brinco, você reclama...Você é uma insatisfeita por natureza. Eu, não. Tento, tento.. se não der..faço graça. Rio do roteiro. Eu sei que exagero às vezes – só às vezes, risos... Lamento. Sei escrever ficção. Sei imaginar coisas boas. Se elas não acontecem, não é culpa minha. Mas que o roteiro era bom, era. Minha vida tem trilha sonora e final feliz. Caso não seja assim, eu reescrevo, gravo de novo, troco os atores, reinvento a cena. Mas eu sei que minha vida tem desfechos felizes. Se os textos não chegarem ao ponto da felicidade, é porque não estão finalizados, como roteiro de vida Malu mesmo. Não estão prontos. São esboços, tentativas. Ensaios de realizações.

Maria Luiza: Olha aí. Na tua fase de vida, não se permite ensaio. É tudo ao vivo. Tudo valendo. Tem que planejar, no que é possível, mas cada dia a gente entra em cena, sendo inteira. Se errarmos, já era, ou, pior, temos que arcar com as consequências disso. Você vive errando. Você vive botando tudo a perder...

Malu: Eu vivo errando, né? Eu, né? Sim, vivo errando, porque vivo tentando. Não fico encolhida feito você, escondida atrás dos afazeres, se enchendo de coisas e se negando a arriscar. Não vê que, pelo teu jeito, a Luiza até foi se embora, pro esconderijo. Bem fez ela, assim não tem que te escutar.

Maria Luiza: Bem, essa outra aí, sem uma dose de uísque não dá pra aguentar. Ali chegou a melosidade e parou. Quando ela se aproxima tenho medo de me transformar num pote de mel, irkkkkk....ou num rio de lágrimas... Vamos parar por hoje. Não estou satisfeita, mas também dessa vez não tive que te aturar com discursos utópicos...você está mais contida.

Malu: Tá, bem mais, se isso te agrada. Bem mais... pelo menos por hoje. Amanhã, não sei. Amanhã será outro dia, como diria Scarlet Ohara. Risos e mais risos.

Maria Luiza: Você não tem jeito...

domingo, 30 de janeiro de 2011

A Leoa Jornalista e La Negra


Eu tinha entrado na faculdade, feliz com a classificação em 15º lugar para o Curso de Comunicação - Jornalismo Gráfico e Audiovisual da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Estudei muito para isso, me preparei, me dediquei, acreditei que podia. Minha família não poderia pagar um curso particular e eu queria mesmo cursar UFRGS. Se estivesse em São Paulo, estado em que nasci, ia querer fazer o curso na USP. Aqui, no Rio Grande do Sul, eu queria ‘a Federal’, até porque não via outra maneira de seguir meu sonho. Coisa de quem escolhe o caminho, pelo menos tenta. Desde muito cedo, eu aprendi a tomar as rédeas (no que isso é possível) do meu próprio destino. Então, decido, miro e sigo trabalhando para conquistar meu desejo, sendo sempre ‘do bem’, sempre com respeito às leis do universo e dos outros. Se não der, não foi por falta de tentar.

Quando fazia o pré-vestibular, uma vizinha, de São Leopoldo, me perguntou quanto tempo eu levaria para passar no vestibular na UFRGS. Eu disse: o tempo de fazer a prova. Vou passar na primeira vez. Ela respondeu que isso é raro, que é muito difícil, que eu fazia pré-vestibular em São Leo, onde morava, que os cursinhos da capital são melhores e tal e tal e tal e coisa. Um saco, desculpem a expressão, mas não acho outra. Depois – observem que essa vizinha era uma pessoa ‘terna’, dessas que parece que passam o tempo todo procurando coisas para desagradar –, outro dia, me perguntou se eu queria fazer jornalismo para trabalhar em banco. “Sim, porque em Jornalismo não há mercado. Há muitas pessoas que fazem o curso e, depois, têm que trabalhar em banco”. Eu não acreditava... “Mas que criatura...Como ela consegue?”, pensei. Respondi: “Olha, eu não vou cursar Jornalismo na UFRGS para trabalhar em banco, mas vou fazer isso para trabalhar em jornal ou algum outro veículo de comunicação. Não vejo nenhum problema em trabalhar em bancos. A questão é que eu sei que tenho que fazer o que gosto, o que me dá prazer e, assim, vou ter mais chances de ser uma excelente profissional. Caso contrário, vou ser uma pessoa amargurada..”. Enfim, eu não quis dizer que pensava nela, quando proferi a frase... deixei assim. Penso que o tempo se incumbe de jogar na cara das pessoas as próprias verdades. Ele faz assim comigo o tempo todo.. já fazia na época. Com ela, não seria diferente.

Bom, nos primeiros dias de faculdade, um amigo venezuelano, já veterano no curso, me convidou para participar de um jornal do DCE. “Malu, você quer participar de um grupo que vai trabalhar em um jornal do DCE? Quer fazer o jornal com a gente? Eu respondi: “Claro, estou aqui para isso, para fazer jornais. Quanto antes começar, melhor”. Assim, passei a participar das reuniões que preparavam o lançamento do jornal O GUAIPECA – pra quem não sabe, em bom gaúchês, guaipeca é um cachorro viralata, pelo menos foi isso que me explicaram, eu sou paulista, fico insegura quando dou essas definições. Enfim, comecei a participar da ‘equipe’ do Guaipeca. Discutimos detalhes técnicos – discutimos é força de expressão.. eu nem tinha um mês de faculdade.. não sabia nada de técnicas jornalísticas. Eu ouvia tudo, atentamente, tentando aproveitar a experiência, assim como faço com tudo.

Quando fomos definir a pauta, no grupo, cada um foi dizendo que matéria queria fazer. Ao ser perguntada sobre isso, respondi que gostaria de ficar junto com quem fosse fazer a entrevista com a Mercedes Sosa, que estava vindo a Porto Alegre fazer um show, um grande show. Pra minha surpresa, só eu e um outro ‘bixo, da Comunicação escolhemos a pauta. Gelei. Meu Deus, estamos os dois, sozinhos, sem experiência nenhuma, com a pauta ( essas alturas, eu já sabia o que é uma pauta, é o assunto, digamos assim) da Mercedes. Falei com ele que tínhamos que preparar a entrevista e ele disse: “Não, não precisa, eu conheço a Mercedes. Já entrevistei Pelé e Emerson Fitipaldi. Fica tranquila”. Eu não fiquei tranquila. Alguma coisa me dizia que aquele homem lindo, quase dois metros de altura, ‘moreno e sensual’, como diz a música, não inspirava confiança. Era um excelente visual, lindo sorriso, jeito calmo de falar, mas eu não me deixava enganar...intuição feminina e ... claro, jornalística. Eu respondi que poderíamos fazer da seguinte maneira: eu prepararia a pauta, detalhada, faria um levantamento de entrevistas que ela já tinha dado na Capital, sua história de vida e montaria o roteiro de perguntas, e ele faria contato com a empresa que promovia o show, para garantir a entrevista. Ele respondeu afirmativamente, com uma tranquilidade invejável, que às vezes eu penso que só os homens conseguem ter – na ostentação de sua matriz psicológica ligada ao poder. Bem, eu estou bem longe dessa matriz, sou feminina, feminina..., meu funcionamento, então, é me cercar de todos os cuidados, para tentar acertar...

Passei uma tarde em arquivos de jornais da capital, recolhendo informações. Sem nunca ter feito uma disciplina de prática jornalística, eu sabia que não poderia me colocar diante da entrevistada apenas com minha emoção e os dados que tinha como ouvinte, como fã fervorosa. Isso é insuficiente – e, em certos casos, até pode vir a atrapalhar. Eu precisava me preparar racionalmente para a entrevista, com dados, com informações. Queria saber o máximo possível, para tirar o melhor da entrevista. Assim eu fiz. Montei uma linha de tempo da vida dela, listei perguntas que ela não gostava que fizessem, observei o que estava mais em pauta na Argentina e Brasil, em termos culturais e políticos – devido à atuação política de La Negra...enfim, cerquei a pauta e a matéria.

Uma tarde, na faculdade, encontrei o meu amigo. Não vou dizer o nome dele, porque é uma pessoa bastante conhecida, embora não tenha seguido o jornalismo. Não sei nem se terminou o curso. Ele acabou optando pela carreira de psiquiatra. Bem, quando o encontrei, perguntei se ele tinha marcado a entrevista. Ele respondeu que não, que tinha estado ocupado e tal. Eu argumentei que a semana estava terminando, o show seria no sábado... temia que Mercedes fosse embora, logo depois do show. Do alto dos seus belíssimos quase dois metros de altura, com o mesmo sorriso de sempre, a tranquilidade masculina singular.. me disse: “Fica calma, Malu. Eu me dou bem com o pessoal da empresa que promove o evento. Tudo vai dar certo”. Eu, no meu estilo ‘seguro morreu de velho’ e de italiana do Sul da Itália, não me deixei envolver por aquele espetáculo de exemplar masculino (não naquele momento, ao menos). “Criatura, nem pensar. Vamos ligar aaagoooraaa”. Ele disparou uma série de mas isso e aquilo e tal e coisa...só que entendeu logo que não adiantaria. Minha determinação nesses casos é implacável. Não há depois. Não há se e mas ou quem sabe. Ligou. Eu fiquei ao seu lado.

Enquanto ele falava, eu fui percebendo que alguma coisa estava errada. “Ah, tá...mas é um jornal de estudantes.. é o público dela.. Ah... tá.. entendo... sim, mas é importante.. temos uma página, a contracapa para a entrevista.. ah.. tá...”. Ele ia falando isso, enquanto me olhava e parecia postergar o final da ligação. Acho que sabia que quando terminasse ia, como diriam meus filhos muitos anos mais tarde, ‘enfrentar a fúria de Malu’. Bah...eu queria matá-lo. Eu sei, não se deve.. não é apropriado... mas a calma dele me irritava profundamente. “Malu, a Mercedes está com um problema de voz. Então, eles cancelaram a coletiva, para poupá-la e ela não vai dar entrevista individual para ninguém. Está se resguardando para o show. Não adianta, você viu, eu insisti, mas eles me disseram que não tem jeito.” Bem, eu respondi o óbvio, para uma jornalista que se preze: “Eu não sei para os outros, mas sei que pra mim ela vai dar entrevista. Eu não estudei nada ainda do Jornalismo, mas não posso ter uma página para uma entrevista e não conseguir fazer.. isso não existe”.

No outro dia, amanheci no Hotel Embaixador, onde Mercedes Sosa estava hospedada. Fiz amizade com porteiro, carregador de malas, floristas, recepcionista...todo mundo. Perguntei o número do apartamento dela. Eles não podiam informar. Entendi, mas pensei. Bem, daqui eu não vou sair mesmo. Em um dado momento, uma senhora impecavelmente bem vestida se dirigiu à recepção. Eu ouvi quando ela perguntou o número do apartamento de Mercedes. Disse seu nome. O rapaz da recepção informou o apartamento e pediu que ela esperasse. Eu imediatamente fui até a florista e perguntei como podia fazer para subir até o tal apartamento. Ela indicou o elevador. Eu perguntei: “E se alguém me ‘pega’ indo para o elevador?” . Ela respondeu que eu poderia dizer que ia ao banheiro, que ficava ao lado. Quando descia as escadas que ela havia indicado, bingo, o rapaz me chamou. Tentei demonstrar tranquilidade, me voltei. Ele, então, disse que o empresário da Mercedes tinha chegado e que eles tinham falado do meu desejo de conversar com ela, de tentar uma entrevista. Eu, simulando calma, respondi: “Ah, tá, ótimo, então. Estava indo ao banheiro, mas vou depois.” E voltei, para conversar com o empresário. Expliquei a situação, o jornal, o público, o desejo, a determinação. Ele foi muito simpático, confirmou que a Mercedes estava com um problema na voz e se resguardando para o show, mas antecipou que, se bem conhecia a Mercedes, sendo assim, um jornal dos estudantes, ela ia querer falar.

Aquilo me encheu de esperança e reforçou minha convicção. Eu vou conseguir. Eu vou conseguir, eu repetia internamente para mim mesma. Raul pediu que eu voltasse mais tarde. Eu voltei dali a meia hora. Não conseguia me afastar do hotel. Não queria perder qualquer movimentação. Quando voltei, o meu ‘parceiro’ de pauta estava lá. Cheguei e o encontrei conversando com uma pessoa da empresa que promovia o show. Essa pessoa dizia pausadamente o quanto lamentava por não ter conseguido a entrevista, que infelizmente a Mercedes não poderia, que ela não também estava chateada, mas que era impossível. Ao mesmo tempo em que eu a ouvia, recebi um bilhete do empresário da Mercedes, marcando a entrevista para as três horas da tarde. Eu olhava o bilhete e o rosto dela, se lamentando. “Que falsa!”, pensei. Ela nem tinha tentado.

Eu agradeci o ‘empenho’ e informei que nossa entrevista estava marcada. “Mas como? Ela disse que não poderia..”, afirmou, perplexa e meio constrangida com a situação. “Talvez tenha mudado de ideia, só isso.”. Assim que se recompôs do susto, a loira oxigenada de voz meio fanhosa disse que a Mercedes sairia para almoçar, que voltaria tarde, que estaria cansada... “Eu, se fosse vocês, gravaria entrevista rapidinho, agora mesmo”, afirmou ela. Eu concordei. Meus amigos reclamaram e eu respondi, imediatamente: “Calma, eu sei o que estou fazendo!”. E, diferente do monumento de beleza masculina do meu amigo, eu sabia mesmo. Eu queria era confirmar com a própria Mercedes Sosa o horário da entrevista.

Em em poucos minutos, Mercedes Sosa chegou no saguão do hotel. Gente, aquela mulher era a imagem da América Latina inteira. Eu me sentia diante de um totem. Iluminada, presença forte. Muito forte. Ao mesmo tempo, muito, mas muuuuitttoo terna. Não há como descrever a emoção do encontro. Ela foi absolutamente cordial, gentil, afetiva. Começamos a conversar imediatamente e ela já começou a falar sobre a emoção de estar no Brasil, as parcerias com grandes cantores e compositores brasileiros, como Milton Nascimento e Fagner, por exemplo. Eu fui fazendo algumas perguntas sobre a questão política, o tempo que passou fora da Argentina, a luta política, a parceria com Victor Jara... enfim.. houve um momento em que um dos rapazes de sua equipe nos interrompeu e me perguntou: “Voces estão gravando?”. Eu estava, mas disse que não. Disse que gravaria a nossa entrevista. “Nossa entrevista vai ser às três da tarde, certo, Mercedes?”. Ela respondeu que sim, mas que talvez se atrasasse um pouco. Eu, então, disse: “Mercedes, se você chegar às três vou estar aqui. Às quatro, vou estar aqui; às cinco, às seis, às sete... espero você o tempo que for preciso, se você garantir que me dá a entrevista”. Ela sorriu e disse que, sim, que certamente conversaríamos quando voltasse.

Bem, eu não almocei. Eu não conseguiria. Na época, ainda fumava – como vocês veem, eu já fiz muita coisa errada. Esta foi uma delas. Hoje não fumo mais, aprendi a suspirar com meu próprio ar, sem nicotina. É bem melhor. Mas, então, eu fumava...aí, sem almoçar, fumava, fumava....ansiosa. Lembram, eu era bixo da Comunicação da UFRGS e já entrevistaria Mercedes Sosa... Era muita emoção. Vocês devem estar pensando.. Ah.. a Malu sempre emocionada... bem, é a vida.. é a Malu.

Enquanto esperava, parava na porta do Hotel Embaixador, eu pensava em tudo o que estava acontecendo. Naquele momento, eram duas horas da tarde e eu já estava li. Esperando. Dez minutos depois, em frente ao hotel, parou um carro da RBS, a rede afilhada da Rede Globo, aqui no Rio Grande do Sul. De um carro enorme cheio de câmeras, desceu um jornalista que fazia um quadro especial sobre música, no Fantástico, todos os domingos. Ele desceu com pose de repórter de tevê famoso e estava entrando no hotel, quando me olhou, penso que me achou com cara de jornalista e disparou a pergunta: “Você também vai entrevistar a Mercedes?”. Eu, já me achando jornalista, respondi: “Eu vou entrevistar a Mercedes!”. Ele afirmou, seguro: “Quando ela chegar, eu vou levá-la para a Redenção para fazer uns takes pro Fantáaaasssstico!” – falou espichando a fala, na palavra que dá nome à principal revista eletrônica da televisão brasileira. Eu, também segura – ainda não sei de onde vinha a tal da segurança essa – questionei: “Você tem hora marcada?”. Ele sorriu, como quem diz, ‘mas quem essa menina pensa que é?’, e disse em tom de ‘estou te dizendo o óbvio’... “Não, mas eu conheço a Mercedes.”. Eu balancei a cabeça e disse: “Bem, então, estou em vantagem, porque eu também conheço a Mercedes e tenho hora marcada”. Ele: “Então, quando ela chegar, vamos ver para quem ela quer dar entrevista.”. Eu: “Sim, então vamos.”. Depois disso, ficamos os dois na porta do hotel, com cara de poucos amigos. A cena era patética. De um lado, o Guaipeca, o jornal do DCE da UFRGS, que ainda não tinha sido lançado. De outro, o Fantástico...sem comentários.

O tempo passou, até que faltavam 20 para as quatro da tarde, o carro que trazia a Mercedes Sosa estacionou em frente ao hotel. Nós dois estávamos a postos. Parecia um ringue. Outras pessoas nos observavam. Um colega da Fabico ( o nome do curso de Comunicação da UFRGS) tinha chegado e ironizava a situação: “Ah, Malu, jura que você acha que a Mercedes vai preferir dar entrevista pra ti e não pro Fantástico?”. Eu respondi, simplesmente: “Olha, eu não cheguei até aqui para ir embora, com medo. Vou esperar”. Mercedes desceu do carro... se aproximou... me abraçou e me disse, sorrindo docemente: “Desculpe pela demora”. Ufa...eu olhei para o tal jornalista famoso aquele, como quem diz: “Entendeu meu chapa... eu disse que conhecia La Negra...dá uma olhada em quem ela está abraçada...”. Era um prazer imenso. Ele, então, deu uma investida: “Mercedes, eu queria que você fosse comigo para uma praça aqui da cidade, para fazer uma entrevista para a televisão”. Ela respondeu, seca: “Não, a única entrevista que vou dar é para a repórter do jornal dos estudantes”. Baaaahhhh.. ele não acreditava. Eu quase não acreditava. Mercedes Sosa abraçada em mim, dizendo que a única exclusiva seria dada para mim. Ele insistiu: “Mas são só duas perguntinhas, uma sobre a mulher na América Latina e outra sobre.. (eu não me lembro o que)”. Ela, então, respondeu com uma pergunta: “Pode ser aqui?”. Ele: “Claro, claro”. Ela: “Então você espera. Primeiro eu converso com ela; depois, contigo.”. Resumindo: deixei o Fantástico jornalista famoso esperando... pelo tempo que eu quis. Fiz uma entrevista longa com Mercedes, minha primeira entrevista a ser publicada.

Antes de sair, pedi para o empresário colocar meu nome na lista dos jornalistas que estavam com entrada liberada para o show. Ele imediatamente concordou. Saí do hotel aos prantos (noooviddaaaadeee né?). Olhei a cidade de Porto Alegre, ali, do alto do viaduto da Borges e vi minha vida inteira pela frente. A entrevista com Mercedes reforçou o que já era uma certeza em mim. Eu nasci para ser jornalista. Eu nasci pra isso e para o jornalismo de qualidade eu vou viver sempre, emocionada com o ofício de repórter, com o encontro humano entre as pessoas. Emocionada com alguém, como Mercedes Sosa, que tem consciência da importância das pessoas simples, da luta política por um mundo melhor, com o amor pela América Latina. Ser jornalista é ter um ofício nobre, raro, que precisa, sim, de formação especial de curso de nível superior, mas também de formação política e afetiva, jornalismo Amoroso, como eu chamei em outro texto. Eu não tinha dinheiro para comprar o ingresso para o show. Ganhei o direito de entrar, como jornalista e, mais que isso, ganhei a certeza do que veio a ser um dos meus ‘sustentos existenciais’, a matriz profissional da Pazza Comunicazione (www.pazza.com.br) minha empresa, em Porto Alegre.

sábado, 29 de janeiro de 2011

Pra que servem as gavetas?


A imagem se chama Mulher com Gavetas e é de Salvador Dali.

As gavetas são lugares interessantes. Territórios onde são guardadas coisas, que classificamos, ou não, que selecionamos ou não. Compartimentos onde também escondemos coisas. Pra que servem as gavetas? Eu perguntei uma vez para minha filha, num momento de cumplicidade, em que, sem tempo para arrumar todo o seu quarto, concordei que guardássemos alguns materiais nas gavetas, misturados, do jeito que estavam, para uma reorganização futura (sabe Deus quando). Paciência. A gente vive no tempo em que vive, na configuração existencial em que se vive. Nem sempre é possível fazer as coisas como gostaríamos ou como elas têm que ser feitas. “Um pouco de possível, se não eu sufoco”, disse Deleuze. Eu penso também nessa frase, entre tantas outras, para me permitir fazer o que dá pra fazer, sem idealização. Um pouco de possível, o que é possível no momento. Para isso, é importante também aprender a se ‘des’-culpar. Perdoar-se, por não ser perfeita. Eu, tantas vezes não me perdoo. São resquícios da onipotência infantil.

Momentos introspectivos, depois de remexer papéis antigos e arquivos no Rei Arthur (o nome que dei ao meu computador da Pazza, o melhor de todos os que eu já tive). Há outros em uso pelas minhas assistentes, mas o Rei Arthur é território meu. O outro, o portátil, que me acompanha por onde eu vou, por aí, nas minhas andanças, e vai estar comigo em Caxias do Sul o ano todo, eu chamo de Príncipe... Ele tem um nome também, mas prefiro não contar. Quem sabe um dia eu conte. Hoje não. Gosto de dar nome e títulos... não faço isso aleatoriamente. Penso, repenso... escolho. Tem que ter uma lógica, assim como ocorre com os nomes dos meus computadores. Talvez isso seja coisa de velha ou de escritora de ficção... vou criando personagens até com meus computadores, personifico imaginariamente e fico com a sensação de que eles têm sentimentos e vontades e que me ajudam a viver, em função disso. (Mas, será que eles não têm sentimento mesmo? Tenho cá minhas dúvidas... enfim...).

Nessas investidas de organização também é preciso coragem. As coisas precisam ser organizadas, mas, quando elas envolvem ‘guardados’... sejam escritos ou materiais, pensamentos, sentimentos, podem trazer sensações também guardadas, lembranças que, por um motivo ou outro, foram escondidas de nós mesmos. Então, nessa aventura de retomar tudo e selecionar, separar, eu me deparei com a condição de agora em que tudo está mexido em mim, também, internamente. Reencontrei textos, poemas, textos estilo crônicas do cotidiano, como alguns que escrevo aqui. Pior, conversas ‘internéticas’ salvas com senha. Da série: ninguém merece. Fechava rapidamente, mas depois abria outra e mais outra... lembranças guardadas de momentos outros. Guardadas pra ninguém ver. Por alguma razão, penso que era também para que eu não visse... mas eu vi, revi.

Janeiro, em geral, é um mês de reorganização das coisas, pra mim. Já tive janeiros melhores que este, bem melhores, mas isso é outro tema. O que eu não tenho, neste janeiro, que tive em outros anos, é compensado por outra condição interna, de repensar o meu lugar no mundo, nas relações com as pessoas. Na preparação da mudança, tento redirecionar minhas atitudes, meus sentimentos. Curar feridas psíquicas. Puxa, que pretensão a minha! Incomodou-me, por exemplo, profundamente, que, em alguns textos meus que reli, havia uma repetição de cenas, de falas, de comportamentos meus. Algo como um sinal de alerta: bem, se há anos eu venho falando as mesmas coisas e tendo algumas mesmas atitudes, é lógico que só posso estar obtendo os mesmos resultados e nem sempre eles me agradam.

Então, a questão que se coloca é como ‘mudar o texto’, não só o texto que escrevi, porque este não se muda... está escrito...era o texto daquele momento, mas como se muda o texto daqui pra frente? Talvez a pista seja começar de um ponto final ou, mesmo, de uma tela (ou folha) em branco, pra começar um texto novo. Mas por que eu sempre acredito que é possível reescrever histórias mal contadas e mal vividas? Por que insisto por anos a fio na tentativa de construir desfechos mais felizes, em roteiros compartilhados?

Talvez você também já tenha ficado com a sensação de estar se repetindo em alguma cena importante da vida e, na repetição, começar a se enjoar com o seu desempenho. Talvez isso não seja ‘exclusividade’ minha, coisa de ‘má atriz’ na vida – já que, para iniciante, não sirvo mais. Então, eu me dou conta que minha competência em algumas áreas faz com que eu me desagrade, profundamente, com um desempenho que fica apenas ‘na média’ (pra ser generosa, comigo mesma), em outras. Não me contento com pouco, quando se trata do meu desempenho. Eu quero sempre fazer o melhor, eu quero sempre inventar ‘a roda’ de novo, de novo, talvez, na tentativa de resgatar a poética da ciranda e reescrever roteiros existenciais em que a trilha era “O anel que tu me deste era vidro e se quebrou, o amor que tu me tinhas era pouco e se acabou”. Quer dizer, será que eu passei a vida toda tentando reinventar a ciranda? Bem.. se for isso, melhor resgatar o outro trecho da música e partir, dizer um verso bem bonito, dizer adeus e ir me embora. Ou, então, encontrar uma gaveta bem grande, com chave e tudo, e guardar a caixa da memória das cirandas, e jogar a chave fora, de preferência, no mar.

O anel que tu me destes,
Era vidro
E se quebrou.
O amor que tu me tinhas
Era pouco e se acabou.
Ciranda , cirandinha,
Vamos todos cirandar,
Vamos dar a meia volta,
Volta e meia vamos dar.
Por isso dona rosa
Entre dentro dessa roda
Diga um verso bem bonito
Diga adeus e vá embora!

Encontro amoroso com o Bapiú Maior

Ele é moreno, alto, olhos grandes, sorriso largo, bom papo. Muito bom papo. É um contador de histórias nato. Cada vez que o encontro, não me canso de ouvi-lo, por horas e horas, contando minuciosamente histórias de mundos e tempos diversos. Sábio, experiente, daqueles que vivem sempre aprendendo e ensinando. Daqueles que têm lição de vida guardada na manga. Vez por outra, vai puxando essas lições, misturadas com a narrativa saborosa de quem, ao mesmo tempo, encena, representa e vai botando pitadas de humor, malícia e cacos narrativos aqui e ali.

Ele chegou à tarde, ontem, na minha casa. Por contingências da vida, é raro que eu receba visitas. Quando recebo, normalmente são pessoas especiais, muito importantes para mim, tanto, a tal ponto que abro meu território subjetivo para compartilhar um tempo. Nessas ocasiões, normalmente, me delicio, porque a visita é sempre alguém muito desejado, por algum motivo ou vários. É o caso. Ele veio me ver. Que coisa boa! É uma alegria que isso aconteça, ainda que de vez em quando... ainda que demore um tempo. Eu também, infelizmente, não posso vê-lo mais seguido. Ao longo da vida, acabamos ficando distantes... acontece. Assim como acontece com grandes amores, ocorre também com o amor entre filha e pai. O Bapiú Maior é Antonio Baptista, o senhor amado meu pai.

Bapiú, porque seu nome é Baptista. A palavra essa surgiu de um texto do meu irmão Cláudio, que, um dia, quando morava na Itália, resolveu escrever uma carta em que fazia uma comparação entre os quatro irmãos, de sobrenome Baptista, com aves raras no mundo, singulares, diferenciadas, com jeitos e características bem específicas. Jeito de ser Bapiú. O jeito de ser Bapiú vem da formação subjetiva a partir da matriz Baptista, do Seu Baptista, como ele é mais conhecido na cidade onde mora, no interior de São Paulo, chamada Guarantã. Para nós, ele é o pai, o Bapiú Maior. Claro que a matriz desses quatro bapiús, em que me incluo, é também da Dona Rita Cardinale, que um dia se casou com o Bapiú Maior, pra nossa alegria, já que, por isso mesmo, existimos.. Sobre ela vou falar mais em outro texto...aguardem...

Sinto que nós aprendemos a nos aproximar, a compartilhar histórias vividas – fomos até a madrugada, alternando o contador de causos, rindo das nossas semelhanças e do quanto as histórias se combinam... uma puxa a outra e outra puxa outra... e assim seguimos horas fio, no fio das narrativas vividas e observadas em detalhes. Assim como quando estou com minha mãe, ao encontrar meu pai, penso que eu não podia ser outra coisa... a não ser comunicadora, jornalista...profissional voltada ao encontro. Os dois têm estilos diferentes. Meu pai, no seu estilo em princípio meio tímido, serião, quando se solta, quando tem confiança, quando fica à vontade na relação, é o que se pode chamar, numa linguagem mais antiga, ‘um cara boa praça’.

Eu sempre me emociono quando o encontro, porque me dou conta da força da ‘matriz’ Bapiú...do que ele chama, em sua célebre frase (pra mim): ‘é o jeitão da madeira!’. Ele usa essa expressão para responder àquelas situações em que o questionamos (claro que isso depois de grande, ninguém nunca pensou em questionar o Baptistão, quando criança.. nem em sonho): “Pai, que o senhor tem? Tá sério? Algum problema?”. Ele, em geral, nesses casos, com a sobrancelha crespa meio eriçada, responde: “Nada. É o jeitão da madeira!”. Gente, eu já pensei muito sobre isso. Isso é uma filosofia. Isso tem a ver com as teorias que eu estudo. Meu pai, então, de certa forma é um teórico. Teórico da vida, mas teórico. Dizer ‘é o jeitão da madeira’ é dizer que cada pessoa tem um jeito que vai sendo forjado, vai se desenvolvendo ao longo da vida, ao sabor do vento, das intempéries, das múltiplas vivências aqui e ali, do lugar onde se vive, do alimento (a comida e o alimento de afeto) que se tem. O Guattari diz isso em suas teorias, em uma linguagem muito mais complexa: dispositivos de subjetivação, de agenciamento do sujeito maquínico, a partir de fluxos incorporais a-significantes. Meu pai diz: “É o jeitão da madeira!”. Espetáculo de frase.

Eu amo também as comparações que ele faz entre as situações, as pessoas e o automóvel. Também já trabalhei um pouco isso, na abordagem de Comunicação e Psicologia, quando discuto a relação das pessoas com as máquinas. Vocês repararam o quanto as pessoas parece que vão se misturando às máquinas com as quais convivem, as máquinas de sua preferência? Meu pai é mecânico. Dos bons.. dos bons só não. É o melhor que eu conheço! Eu diria que ele é um doutor em carros. Sim, porque, do jeito que ele fala, sinto que ele não apenas conserta os carros, ele consulta, analisa, faz exames e, depois, receita, o que precisa ser alterado ‘no sistema’, para que volte a funcionar como antes. Ao receber um carro em sua oficina, ele vai se cercando do máximo possível de informações, captando os elementos sutis do discurso do proprietário do veículo, tentando entender a dinâmica do início do defeito, antes mesmo de botar a mão no carro. A isso se soma também um conhecimento global do cliente.. quer dizer, como a cidade é pequena, ele conhece praticamente todo mundo e sabe os (maus e bons) hábitos dos clientes, que podem ter gerado esse ou aquele defeito. Meu pai é um ‘expert’, um especialista em automóveis.

Ao ler o texto escrito até aqui para minha filha, Giulia – curiosa em saber o que escrevi para o vô – ela disse: “Ah. Acho que ele vai se emocionar. Acho que ele chora. Ele é meio serião, é o jeitão da madeira, mas a madeira não é tão dura quanto parece.” Giulia conhece bem meu pai. Sabe que por trás do jeito meio bravo às vezes, ele é alguém que teve o jeitão da madeira também moldado para se emocionar. Quando eu era criança, meu pai era mais severo, mais bravo, não se soltava. Claro, eu e meus irmãos éramos crianças, e ele tinha que nos ‘moldar’ no ‘jeitão da madeira’, para sermos responsáveis, trabalhadores, sérios (no sentido de comprometidos), sujeitos do bem. Ele conseguiu. Hoje, com os filhos criados, às voltas com o encontro com os netos, ele aconselha, diz o que percebe, mas também se permite se soltar, se emocionar, falar mais do sentimentos, se entregar mais... pra vida e para a relação amorosa conosco. Está mais solto. Eu obviamente não estou escrevendo o texto para que ele chore.. estou escrevendo para publicar o óbvio, para usar este espaço e declarar, aos quatro ventos, que eu o AMO – assim como é do meu feitio.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Por que Margaridas Brancas? O início....


Esse espaço, Margaridas Brancas, como eu venho anunciando, é um canteiro de palavras e imagens. Mas, de onde surgiu este título? Por que Margaridas Brancas é uma metáfora tão forte para mim, a ponto de dar nome ao meu território subjetivo de escritos, tão carinhosamente preparado para amigos queridos, para receber pessoas interessadas em compartilhar minhas ‘ma-lu-‘quis’-ces’. Vocês sabem, a palavra certa é maluquices, mas será mesmo que eu tenho que me preocupar, também, com a palavra certa, no caso de maluquices? Uso assim, porque brinco com a ideia de que a Malu ‘quis’ser.. enfim.. invencionices e brincadeiras discursivas, que são uma das minhas diversões preferidas. Brincar com as palavras, ajeitá-las, semeá-las, aninhá-las aqui e ali e, na brincadeira, ir provocando, insinuando, atiçando o Outro, para um encontro prazeroso e que nos ajude a dar significado para o turbilhão interno, para o cotidiano caótico, para os momentos de amor e de desamor, para os de encontros e desencontros.. enfim.. assim...

Então, vamos lá, o motivo, ou o início do motivo, que a história é longa. Margaridas Brancas eram as preferidas do meu nonno (avô, em italiano), senhor Diodato Cardinale. Eu o amo e amei a vida inteira, sem tê-lo conhecido. Ele desencarnou antes que eu nascesse. Conheci-o através da fala apaixonada da minha mãe, Rita Cardinale. Meu nonno era um dos imigrantes que vieram para o Brasil, para “fazer a América”, para reinventar a vida, para retomar as rédeas de sua história, reescrevendo a história de si mesmo. Cinco anos depois de ele ter deixado a Itália, minha mãe, então com 10 anos, veio atrás dele. Ela veio de navio, numa travessia que durou 14 dias e 14 noites, em 1952, juntamente com seu irmão, Antonio Cardinale, que tinha apenas 14 anos. Ela veio em busca do pai. Fico pensando na loucura que deve ter sido essa viagem..., no que significou para uma adolescente atravessar o oceano com o irmão, em um navio. Tudo parece incrível e de uma intensidade de sofrimento atroz: a despedida no porto de Napoli, deixar a mãe e as irmãs.. e a Itália.. meu Deus... deixar a Itália... Sempre me vem vontade de chorar, quando penso nesse momento. Provavelmente eu traga esse choro de outras vidas, quase certo. Ao mesmo tempo, questiono: já não me basta o choro desta vida? Se eu trouxe choro das outras, então, sou mesmo um caso perdido.

Bem, minha mãe chegou ao Brasil, no porto de Santos, assim como tantos imigrantes que vieram para o Estado de São Paulo. Era dia dois de fevereiro de 1952. Meu nonno foi buscá-la e levou os dois filhos para viver em uma pequeníssima cidade do interior paulista, chamada Guarantã. Ali minha mãe cresceu, casou e teve filhos. Na mesma cidade, meu nonno morreu. Alguns anos depois da morte dele, ela vivia com o então marido e os filhos, e a família passava por dificuldades financeiras. Tudo era muito difícil para a costureira Rita e o mecânico Baptista. Numa madrugada, minha mãe teve um sonho. Sonhou com meu nonno. No sonho, ela contava para ele o quanto a situação era complicada, com o que ganhava como costureira e o salário de meu pai, que trabalhava como mecânico de caminhões, em uma fazenda de gado. Meu nonno, então, perguntou: “Rita, por que você não faz flores para vender?”. Ela imediatamente respondeu: “Mas, pai, nós estamos vivendo muitas dificuldades, imensas. Para fazer flores, eu vou ter que aprender, vou ter que fazer um curso. Aqui em Guarantã, não tem curso. Vou ter que ir a Bauru (uma cidade maior, da região). Isso é impossível”. Ele, então, calmamente, disse: “Filha minha, não precisa. Olha bem em uma flor, que você vai ser capaz de fazer, qualquer flor. É só você olhar bem, que vai saber como fazer”. Ela acordou chorando e contou o sonho para o meu pai. Eram quatro e meia da manhã. Ela tinha que fazer comida, para o meu pai levar para almoçar, na fazenda.

Já na cozinha, minha mãe tratava de fazer a refeição, mas o sonho não saía da cabeça. De repente, olhou para a janela e, pela vidraça, avistou um canteiro de margaridas brancas. Eram do meu nonno. Estavam plantadas em um canteiro especial, em homenagem ao seu pai. Aí, ela saiu, foi até o canteiro e apanhou uma margarida (coisa que nunca fazia... o canteiro era quase um território sagrado, ninguém mexia). Olhou para a margarida e, imediatamente, percebeu que saberia como fazer uma flor semelhante àquela. Juntou uns trocados, que tinha recebido como pagamento do trabalho de costuras, comprou material e, no mesmo dia, fez um ramalhete de margaridas e botou na estante. Uma vizinha, chamada D. Ernesta, olhou as flores e perguntou: “D. Rita, a senhora não diz que não apanha as margaridas do Seu Diodato?”. Minha mãe respondeu: “Não apanho mesmo.”. “Mas e aquelas ali?”, questionou a senhora, apontando para o ramalhete de margaridas brancas que minha mãe tinha feito. Resumindo: as flores tinham ficado realmente muito parecidas com as naturais, a tal ponto que a vizinha as confundira com as do canteiro. Daí, desse momento, do sonho com meu nonno, nasceu uma fábrica de flores, que sustentou minha família, durante os anos. De certa forma, esse dia sustentou o projeto de vida que me trouxe até este momento aqui, jornalista, blogueira, doutora em Ciências da Comunicação. Eu cresci, estudei e me formei profissional de Comunicação, sustentada por uma família que viveu produzindo flores, durante muitos anos, dias e noite e madrugadas....

De certa forma, posso dizer que devo uma parte do rumo da minha vida às Margaridas Brancas. Isso é só o começo da explicação... aos poucos, vou publicando os capítulos seguintes.. não percam! Beijos.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Com a palavra, a leoa Dra Cardinale


Bem, conviver não é nada fácil. Conviver com as variações internas tampouco. O diálogo entre a Maria Luiza e a Malu teve grande repercussão interna e externa. Foi interessante receber os retornos, os e-mails, comentários feitos pessoalmente. Relendo a conversa, fiquei com a sensação de que a Malu levou a melhor. A Maria Luiza, na sua determinação de encontrar ‘o mundo certo’, foi sendo desbancada por uma Malu mais madura (Putz..ela vai ficar louca comigo...tô chamando de velha? Bem, não importa... cada um tem a idade que tem). Bem, de qualquer modo... abro espaço para a Dra Cardinale, que ficou se debatendo em mim. Ela é a leoa maior, mais parece uma fusão de eus. Talvez seja um pouco essa negociação a que a Malu se referiu. Não sei. Sei que a Dra Cardinale é uma das minhas grandes ‘verdades’. Segue a fala:

O tempo tem mais me ajudado que me judiado. Eu sei, estou mudada externamente. Eu sei, tenho as marcas do tempo e estou longe de uma aparência de menina, de jovem, jovem. Mas isso é um dado, não é um problema. Eu sou uma MULHER, não sou menina, não sou adolescente, não sou fragilzinha, não adianta. Este não é o meu perfil. Quem quiser conviver comigo, tem que partir disso. Ter paciência. Se preferir mulheres de contos de fadas tem que ir pra literatura. Eu sou uma mulher forte. Forte e frágil, como eu sempre digo, mas essa fragilidade tem se restringido muito. O que acontece é que a gente vai vivendo, vai vivendo, vai tropeçando, levantando, despencando, lidando com as consequências e, com o tempo, tudo segue mais naturalmente, sem dramas maiores, até mesmo as dores fortes, as grandes pancadas. Às vezes, me distraio, me solto mais... e desabo no ‘eu de antes’ (a Luiza menina), mas isso tem sido cada vez mais raro. Eu vi uma camiseta, uma vez, que nunca mais esqueci. Era uma camiseta branca, com um enorme cacho de uvas roxas. Acima do cacho, estava escrito: “Tudo na vida passa”; na parte inferior: “Até uva passa!”. Então, eu não me abalo.

Claro, eu continuo com a sensibilidade extrema de antes. Penso que não deixei de ser assim, sensível e tal (não vou falar muito disso, se não, a Maria Luiza vai se enlouquecer de novo, de braba), mas penso que aprendi a ‘matar no peito’, algumas bolas mais fortes, algumas situações mais difíceis, em todos os sentidos. Neste caso, sigo a orientação da minha nonna. Ela sempre me dizia: “Na vida, a última coisa que se perde não é a esperança. É a pose”, mas ela não se referia à pose, no sentido de ‘fazer de conta’, mas no sentido de ter postura, de empertigar o corpo e enfrentar a vida, assim, como quem enfrenta o mar. Minha nonna era uma nadadora. E completava, com outra frase, que ficava na metade.. ela não ousava dizer a última palavra. “Quanto mais você abaixa, mais aparece a....”. Ela não queria dizer a palavra ‘bunda’, porque minha nonna era uma senhora italiana, nascida em Subiaco, uma cidade próxima a Roma, tinha sido esposa de um comendador, o senhor meu nonno Diodato Cardinale. Então, ela trazia a tradição italiana arraigada. Não ficava bem falar a palavra ‘bunda’ pra neta, mas o ensinamento era o mesmo. Eu entendia. “Não te humilha. Não implora nada, por mais que isso seja importante para você. Vai embora, se for o caso. Não se lamenta, só segue em frente. Só isso”.

Talvez, em função disso, eu tenha repetido a seguinte fala, nos últimos tempos: “Eu sou descendente de gente que sobreviveu à guerra. Então, não espere que eu desabe por qualquer coisa”. Hoje mais do que nunca sou assim. Sofro, me emociono, como disse a Malu, no outro texto, vou à forra com a vida, mas não tenho vocação para sofrimento duradouro. Sofrimento tem que ter tempo marcado e curto. Não pode mandar na gente. Não pode nos ‘possuir’. Sofrimento, qualquer que seja, também passa.

Um exemplo cotidiano é uma situação em que queimei a mão com óleo quente. Um horror... uma dor imensa. Eu estava finalizando meu Relatório de Qualificação do Mestrado na época. Escrevia o texto em máquina de escrever (Alguém lembra? Teclas duras...). Precisava muito das minhas mãos ‘em dia’. A finalização do trabalho dependia disso. Na cozinha, fazendo uma fritura, de repente, do nada, formou-se uma bolha que explodiu e o óleo quente pegou parte da minha mão direita. Bahhh.. eu me lembro da dor até hoje. A sensação é que eu ia dissolver de tanta dor. O ímpeto inicial foi andar de um lado pra outro... pensava coisas desencontradas... se botava gelo... se corria.. gritava...me debatia...meu ex-marido tentava me ajudar, mas eu não conseguia nem escutá-lo. Só que, rapidamente, me dei conta que aquela dor não passaria, independente do que eu fizesse. Não imediatamente. Não rapidamente. Eu podia ir ao Hospital de Pronto-Socorro, coisa que acabei não fazendo.

O mais importante, contudo, foi me dar conta que não adiantava me debater. Então, sentei, olhei para a minha mão. Os dedos ainda estavam ali. Ufa! Pela dor que sentia, eu tinha fortes dúvidas em relação a isso. Me concentrei e comecei a pensar no restante do corpo, em tudo o que não estava doendo. A dor enorme continuava, mas eu fui me dando conta que o que doía era uma parte pequena, em relação ao todo da Malu. No restante do meu corpo não doía nada. Ia muito bem, obrigada. Então, optei por me concentrar no restante, no que não doía... Eu entendi que ganhei o dia, com a tal da queimadura. Aprendi uma das maiores lições de vida. Uso até hoje. Eu procuro me concentrar, meditar, buscar recursos internos para não me fixar nas dores. Independente do que estiver doendo. Reconheço que sou uma PESSOA com corpo, alma, espírito em condição de complexidade, o que me dá possibilidade de investimento em outras direções, que não a do sofrimento. É tudo uma questão de opção.

Lembrei agora as aulas de Comunicação e Psicologia, quando, na Oficina das Músicas, eu comentava um traço do sujeito deprimido. Vocês já repararam que a pessoa deprimida ‘curte’ a depressão? É, parece que ela sente uma espécie de prazer mórbido em ficar deprimida (Então, na prática, deveria ficar feliz por atingir seu objetivo...). Essa pessoa faz tudo para continuar sofrendo: busca fotografias antigas, sempre com a pessoa relacionada ao sofrimento; procura, por horas, uma música especial (a mais triste que existe); faz pratos típicos, também relacionados ao sofrimento. A pessoa deprimida é uma ‘profissional’ do sofrimento. Tem técnica. Eu sempre digo que é preciso fazer escolhas... optar se quer continuar triste ou se quer melhorar. Se quiser continuar triste, é fácil. É só cultuar o motivo de sofrimento. Se quiser melhorar, faz o contrário... abre mão. Tem coisas que não têm solução e ponto. Não dependem da gente. Quer dizer, a escolha do caminho é fácil, barbada. É só largar e seguir em frente. Não se detenha.

Outra dica pra lidar com o sofrimento é desbastar a onipotência. Onipotente é Deus. A gente não é quase nada, diante Dele. Quer dizer, a gente acha que pode tudo, que tem que conseguir tudo o que quer. Não tem. Às vezes, a gente não consegue. Há razões para isso, mas nem sempre acessamos a essas verdades. Parece incompreensível, inaceitável, mas, por alguma razão, que a própria razão desconhece, aquilo tão esperado... não acontece. A resposta é óbvia: o mundo não gira em torno dos nossos umbigos (eu sei, tem gente que não consegue aceitar isso, mas é verdade), o movimento cósmico não depende só de nós (depende também de nós mesmos). Então, temos que fazer a nossa parte, mas não podemos fazer a parte dos outros, nem do Universo. Fico pensando que, nessa grande travessia, nessa imensa aventura, que é a vida, às vezes, sabedoria significa abrir mão. Às vezes, é melhor ir embora e buscar outras terras, como fizeram os imigrantes italianos. Isso não é sem dor, mas é o que tem que ser. Aguenta-se a saudade, as lembranças dos momentos bons, a dor do tempo distante, as ausências, mas sobrevive-se e tem-se a chance de se reinventar em outro mundo. É isso.

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Encontro de leoas 1



Bem, para facilitar as coisas para você, leitor, uma explicação inicial: tenho dito para amigos amigos que existem diferenças em mim, grandiosas, nos jeitos de agir da Maria Luiza, da Malu e da Luiza. Tem também a Cardinale e algumas outras, mas as três primeiras são as principais, sem querer ofender ninguém. Uma vez, conversando com uma pessoa racional, racional (bem diferente de mim, portanto), ela disse: “Olha, você não vê que é uma pessoa só?”. Eu vejo, eu sei, mas fica mais fácil de entender algumas coisas, se eu compreendo que elas são diferentes, porque partem de lógicas diferentes, de matrizes de orientação diferentes. Bem, segue, então, um encontro de leoas, meu primeiro diálogo interno publicado. Com vocês, Maria Luiza e Malu Cardinale – eu mesma.. as duas...

Maria Luiza: Prezada criatura eu mesma, na versão tonta, digamos. Tenho acompanhado tuas publicações neste blog e não me surpreendo, mas também não consigo me deter, diante da convicção de que preciso te dizer algumas verdades. São textos muuuuiiiitttooo melosos. Você se derrama muito. Você se declara muito. Você passa o tempo todo falando de amor, amor, amor... Mas será possível que você não tem autocrítica? Não vê que não estamos em tempo de tanto amor assim, de tanta dedicação aos outros? Ninguém mais faz isso e quem faz sempre se rala... sempre fica à espera da espera da espera da espera...

Malu: Meu jeito é assim. Nada do que eu disse é mentira. Nem uma vírgula. Nem um ponto, qualquer que seja. Eu tenho como orientação o que eu chamo de ‘dar o texto inteiro’. Então sou assim, me mostro, me solto, me entrego. Tenho que confessar um pensamento que me ocupou a mente hoje: um dos meus problemas é a Poética. Um tipo de complexidade, um jeito de viver a vida... num mergulho abstrato teórico de intensidade, vivendo tudo às ganas, ‘sentir com as tripas’, como disse um dos autores que eu estudo, o psicanalista Luís Carlos Restrepo, no livro O Direito à Ternura. Às vezes, isso me incomoda, sim. Uma vez me disseram que eu tenho teoria pra tudo, que de tudo faço teoria. De certa forma, é, sim. Vivo cada coisa com intensidade afetiva e reflexiva. Não tem jeito. Outra pessoa me disse que eu vivo fazendo enredo. Também é verdade... eu tenho que estudar mais Aristóteles, eu sei que tenho. Se vou fazer enredo, que seja também com profundidade filosófica. No capricho, como tento fazer tudo.

Maria Luiza: Mas não vê que isso pode te atrapalhar? Te tirar o prumo, o motor prático operacional? Há muitas tarefas, muitas coisas por fazer. Você gerencia vários mundos de várias pessoas. Tem muita gente que depende de você. Muita gente que se espelha e cuja vida depende de você estar bem, produzir, fazer um bom trabalho, cumprir tua missão de ser humano do bem. Não pode se dar ao luxo de delírios poéticos, de viver assim inebriada pelos acontecimentos cotidianos, como se fosse uma adolescente romântica...

Malu: Problemas no teu discurso, minha cara. Problemas. Não há, ninguém que eu conheça que tenha total controle de si mesmo. De tudo o que eu sei sobre o ser humano, o que me parece mais óbvio é que todos vivemos oscilando, ao sabor dos humores, das alterações internas dos líquidos, das marés de sentimentos e substâncias afetivas, que ora nos mandam para um lado, ora para outro. Então, afinal, o que é o prumo? O motor prático operacional eu sei bem o que é, porque o meu está acionado o tempo todo. Independente do que eu estou sentindo, mesmo agora, que me sinto como me sinto (melhor não detalhar), tenho sempre que seguir adiante. Faço o que tenho que fazer. Nem sempre no mesmo ritmo. Às vezes tenho que parar para chorar, brigar, xingar, espernear, mas sigo sempre fazendo e, até onde é possível, tenho feito as coisas com qualidade. Outra coisa, eu vivo sim, apaixonada, mas estou bem longe da adolescente romântica que fui um dia... vivo amorosidades desejantes, investimentos desejantes... isso é outra coisa. Você está desatualizada de mim.. isso, sim.

Maria Luiza: Sim, senhora, mas poderia sofrer menos...

Malu: Talvez, mas sei que sofro na medida da intensidade que vivo, que serve como força, como energia, quando vem, quando as coisas acontecem. Eu respiro assim. Eu sou assim. Então,quando sofro, também estou indo à forra com a vida, não estou aqui a passeio, sei que vivo ‘como gente grande’ e essa é a única forma que sei viver. Eu já fui criança, mas isso faz muito tempo. E fui uma criança assim também, amorosa e reflexiva. Tinha mais medo. Hoje não tenho mais. Quase não tenho... poucas coisas me dão medo e, em geral, quando dão, eu acabo enfrentando, porque aprendi que assim é que tem que ser.

Hoje, percorrendo as ruas de Caxias do Sul, cidade onde vou passar, pelo menos, parte da semana, me dei conta que sou assim mesmo. Eu observo os detalhes, me observo, rio da minha própria atrapalhação com a desorientação espacial... ainda não conheço bem a cidade. Houve um momento que saí para ir à imobiliária. Tinha decidido ir a Porto Alegre, mas um telefonema da imobiliária mudou meus planos. Então, saí.. e caminhei, caminhei... mas achava algo estranho...a rua mais inclinada. Eu não tinha subido lomba na outra vez. As lojas diferentes. De repente vi uma loja com flores. Aí parei e disse pra mim mesma: “Ah, não.. uma loja de flores eu teria visto e registrado a informação. Eu não passei por aqui. Mas, então, aconteceu o quê... eu fiz a mesma coisa que fiz ontem. Saí do hotel caminhando... na direção que a mulher da recepção indicou para ir à imobiliária”...Hum, bem, sou desorientada, mas sou humilde (risos, algum valor isso tem que ter), assumo que me perco. Então, perguntei para um senhor a localização da imobiliária tal, que não vou dizer o nome, pra não fazer merchandising... e ele me apontou o outro lado da rua...e disse, sim, é nesta rua, mas é láaaaa.. no início. Putz. Eu estava caminhando na direção contrária.

Maria Luiza: Olha aí, tô dizendo... tô dizendo...você se atrapalha.

Malu: Eu me atrapalho, mas não sozinha. Eu e a torcida do Flamengo, no caso, como estamos do Rio Grande do Sul.. do Inter e do Grêmio juntas. Ah..e do Juventude também. A atrapalhação, neste caso, tem mais a ver com a presunção de tentar saber todos os caminhos, as direções, que é mais coisa tua que minha. Eu não, me assumo atrapalhada... frágil e forte.. você é que vive dando a entender que sabe os caminhos certos. Também se rala por isso.

Aos poucos, vou tomando pé... vou construindo território subjetivo, tentando me misturar à paisagem. Sinto que, no início, no entanto, é preciso reaprender a caminhar, parece que nem mesmo enxergo direito... é estranho, os lugares não ‘fixam’, ao mesmo tempo que tudo chama minha atenção, tudo parece ter um brilho e um encanto diferente. Em outros momentos, as pessoas passam, passam, passam, uma, outra, em grupos... elas riem entre si, conversam, esperam ônibus, dirigem...estão ambientadas, se sentem em casa. Eu ainda não me sinto em casa, mas estou vivendo a mutação em mim, o estranhamento, o desassossego e a graça de estar vindo para um lugar diferente. Estou em busca de um novo território subjetivo, um outro lugar (também interno) pra viver e ser feliz. A mudança está em mim. Quem viver, verá. Penso que nós duas vamos ter que ceder...um pouco.

Equilibrista e Des-penc-‘adora’


A metáfora da equilibrista tem me acompanhado nos últimos anos. Não que eu seja muito equilibraaaaada, mas, na prática, como todo mundo, vivo o tempo todo às voltas com a necessidade de equilibrar meus humores, meu cotidiano, a mim mesma. Há alguns anos, aprendi uma Oficina, uma dinâmica de grupo, que tenho trabalhado durante muito tempo, na disciplina de Comunicação e Psicologia ou Psicologia da Comunicação, como era chamada antes. Oficina do Equilibrista. É uma prática muito divertida, simples, mas, como tudo simples na vida, que se remete às questões mais complexas e profundas da existência. Eu tenho aprendido que há uma conexão direta entre a simplicidade e a complexidade.

O que me traz a lembrança hoje é a parte final da oficina, não a inicial. Não é a parte do equilíbrio, que está em jogo, mas o momento do desequilíbrio, que, no caso da oficina, é chamado de ‘momento de despencar’. Explico: na atividade, os participantes são chamados a testar o equilíbrio, com o corpo. Inclinam-se para a direita, depois para a esquerda, para frente, para trás. A inclinação é até o ponto máximo de equilíbrio. Tem que se inclinar até o máximo, tentando ampliar os limites, sem cair. Depois de fazer isso um tempo, eu sempre peço para o grupo treinar o ‘despencamento’, quer dizer, treinar cair no chão. É interessante observar que as pessoas ficam perplexas, incrédulas. Algumas balbuciam, visivelmente em dúvida, tentando confirmar a orientação: “Hum, des-pen-car, assim... se jogar no chão?”. “Sim, sim”, eu confirmo. Despencar... cair no chão, mas a ideia é que ninguém se machuque. Então, cada um tem que descobrir uma maneira de despencar, sem se machucar.

Depois de um tempo em dúvida, alguém se arrisca, corajosamente. Depois outro, outra, e assim sucessivamente. Em geral, que a primeira pessoa ‘se permite’ o ato de despencar, existe a tendência que as outras também despenquem. Eu também despenco. Às vezes, em primeiro lugar, se o grupo empacar. O que tentamos entender depois é por que existe tanto medo de despencar? Na tentativa de responder, as respostas giram em torno de “Fiquei com medo de me machucar.” , “Ah, dá vergonha, porque parece que vai ficar todo mundo olhando.” , “Eu fico pensando, e depois? Como vou conseguir levantar?”. Bem, então, dá pra entender o que está em jogo: o medo, de se machucar, o medo da exposição, o medo das consequências, de não conseguir reverter algum resultado negativo. O que chama atenção é o jogo de forças entre a vontade de se arriscar e despencar e o medo, que trava. Assim, na ‘beira do abismo’ de si mesmo, o sujeito se debate com uma questão mitológica, em que está em jogo um dos grandes dilemas do ser humano: manter-se na monotonia e conforto do mundo conhecido ou arriscar-se e despencar num mundo novo, todo a ser construído, inventado, cheio de oportunidades novas. Esse mundo pode machucar, mas também poder ser cheio de alegrias, prazeres, felicidade.

Fico pensando, então, que, nas mudanças da vida, há sempre risco. Risco de despencarmos em um projeto novo, um novo emprego, um novo amor, uma nova condição de vida, a mudança para outro lugar. ‘Despencar’ em uma nova história é uma ousadia, é uma manifestação de coragem, às vezes de loucura, mas, quero crer, naquela proporção em que a loucura é necessária, quando o que vivemos é algo a ser abandonado. Ir embora. Aprontar-se para partir não necessariamente é ruim, se o que estamos deixando é uma vida com limitações importantes, para o rumo do que chamamos de felicidade. Eu tenho me esforçado para ter coragem de despencar em projetos novos de vida, sempre que algo me incomoda e outra coisa me mobiliza. Nem sempre é fácil. Às vezes, é, mesmo, imensamente difícil. Em muitas situações, faço o despencamento com medo, com muito medo. Mas tenho procurado enfrentar ‘o instante’, o ponto limite aquele, em que temos que decidir se vamos adiante, se nos entregamos para o motivo do despencamento ou se damos um passo atrás, recuamos, retomamos o ‘controle’ da situação, porque resgatamos a monotonia confortável da situação de antes.

Minha vida de viagens, nos últimos tempos, no último ano, em especial, provocou a Malu Equilibrista e Des-penc-‘adora’ e eu tenho me soltado em muitos, muitos projetos novos... em todos os que vejo possibilidade, real ou pressentida, intuída, sentida...de obter ALEGRIA. Com o tempo, entendi, vivendo, que a intensidade dessa força que nos impulsiona para ‘o algo’ esse que buscamos... pode ser chamada D E S E J O. As duas palavras DESPENCAR E DESEJOS simulam movimento para frente, impulsionam o sujeito. Diga-as bem devagar que você vai perceber isso... DEEEESSSSPEEEENCCCAAAAARRR.... DEEEESSSSSEEEEEJJJOOO. São palavras saborosas. O resultado pode também machucar, mas, pela experiência que tenho, a coragem de enfrentá-las e vivê-las no seu risco.. na sua graça... já é uma satisfação porque essa é a nossa grande chance de felicidade. Enfim... eu sigo... vamos despencar comigo?

domingo, 23 de janeiro de 2011

Perguntinha básica....



O mais importante do dia de hoje é pra onde estou indo. Pra onde estou indo? Que viagem é esta que, supostamente, eu construí. Não sei, eu tenho dúvidas. Não, não tenho. Sei que, em parte, eu construí. Mas sei também que existe uma construção maior, algo que eu chamo de conspiração cósmica. Há detalhes ainda não explicados. ‘Rumos desta prosa’, como eu costumo dizer, que ainda não sei. Não sei grande parte do destino (da vida e da viagem mesma). Princípio da incerteza na vida.

Tenho poucas respostas. Fico em dúvida como, de repente, tudo se fez, como num passei de mágica. “Foi tudo muito rápido!”, me disse alguém que gosto muito. Sim, eu também não imaginei que seria assim. Eu mesma tinha dito que não queria mais, que não faria, que era loucura. Depois de setembro, tudo parecia ter perdido sentido, um certo sentido, embora houvesse outras pistas, quanto a minha necessidade profissional de expansão e a percepção de que isso aconteceria no interior (neste caso, me refiro a interior do Rio Grande do Sul, embora, pelo meu jeito introspectiva, o interior também seja sempre, também, o meu interior).

Às vezes, eu penso algumas coisas para minha vida, que mais parecem sonho... penso assim: “E se acontecesse tal coisa, como seria? Acho que seria bom, porque, de repente, a vida mudaria, teria uma graça e tal”, e me ponho a mirabolar como poderia ser se o tal acontecimento se fizesse acontecimento real e não apenas acontecimento imaginado. Pimba! De repente, do nada, aparentemente do nada, o cosmo se movimenta e as coisas começam a caminhar naquela direção. Fico, então, pensando nos ensinamentos da Física Quântica e no cuidado necessário para os desejos que a gente entrega ao Universo. Em geral, se o desejo tem consistência de desejo, ou seja, se ele adquire certa intensidade de energia... ele tende a se constituir devir, ou seja, é o que deve vir a ser. Isso é bom, mas também exige cautela com o os rumos desejantes internos.

Por sorte, eu não tenho dúvida quanto ao que desejo. Por sorte, meu desejo não foi feito às pressas, por impulso inconsequente de quem não pensa. Ao contrário, pensar é uma das coisas que mais faço e que mais gosto de fazer. Mais um defeito de fabricação, digamos assim. Gosto de outras também, lógico, mas pensar me faz bem... me sustenta, ainda que também me trave, às vezes, e me torne por demais explicativa... É assim: produz-se pensamento, eu penso, penso.. repenso e depois digo...aí é que eu me complico. Nem todo mundo quer explicações. Nem sempre é preciso partilhar explicações. Às vezes, é melhor guardar... bem, é o custo de ser uma teórica, reflexiva, ou de passar muito tempo comigo mesma, em produção intelectual...o processador satura. Olha só... estou eu explicando de novo. Ainda bem que tenho o Margaridas Brancas... assim posso escrever e, aí, se alguém quiser... lê.. se cansar.. não lê...enfim...

Bem, não vou me estender muito. Também não vou contar pra onde estou indo. Outro dia eu conto. Como eu disse, há muita coisa do ‘desfecho’ que ainda não sei. Sei que estou indo para onde queria ir. Eu conheço a situação. Sinto que estou sendo levada para um rumo desejado, mas também traçado, de alguma forma, por uma instância maior. Então, que Deus me proteja e me ajude a ser a Malu Amorosa Pazza, em qualquer lugar, como profissional de Comunicação, como profissional de Rádio, como Educadora, Jornalista, Empresária, Doutora em Ciências da Comunicação e, também, como Malu Pessoa Mulher, simples ser humano na vida, cheia (repleta) de defeitos. Assim, qualquer que seja o destino, humildemente agradeço. Sei que vou sozinha, assim como tenho vivido grandes viradas da vida, nos últimos tempos, e que não vou sozinha, porque Deus me cuida. Obrigada.


AMORAMIZADE E SUAS MA-LU-‘QUIS’-CES

O amor precisa ser calmo, precisa ajudar a dar paz, a resgatar a sensação de plenitude, de aconchego, de confiança plena, de possibilidade de desnudamento, pleno, sem medo, sem constrangimento. Substrato amoroso. Eu acredito nisso. Meu Deus, como eu acredito nisso. Daí que o amor tem que ser também amoramizade, pra suportar os apesares de... pra garantir que a ‘corda não arrebenta’ no primeiro defeito, nem no segundo, nem no centésimo. O amoramizade é desmedido, mas não é idealizador. O amoramizade aceita, não idolatra, não endeusa. No amoramizade, o laço é firme e o fluxo intenso, sempre... nesse laço, o amor se solta, se permite. O grande risco é ser amado e ser feliz. Só isso.

O amoramizade tem que ser também amorosamente sexual. Tem que ter ‘pegada’, pulsão avassaladora, daquelas que nos arrebatam na porta e parecem que nunca vão passar. Amor sem isso também não tem graça. O amor tem que ter gosto de ‘deliciamento’ no outro, sem restrições, sem constrangimentos. Amor sem conta, sem tempo, amor que reinventa os lugares, meio que encantando os cantos onde o amor se fez.

Ah.. o amoramizade sexualmente amoroso não se desfaz, a não ser pela diminuição de desejo e, mesmo assim, ele não é aniquilado. Ele adormece, por um tempo, vai embora, se aquieta por momentos, até que, em um dado instante ou dia, seja reacendido, por um estopim qualquer... um olhar, um riso, as mãos que se encontram, o roçar de pele...aí.. o amoramizade deliciosamente sexual se reacende e preenche a vida e parece mágica e apaga toda a ausência, destrói memória, orientado apenas pela pulsão amorosa. Literalmente... ‘ma-lu-quis-ce’.

sábado, 22 de janeiro de 2011

“Mãe, eu sou um pouquinho mulher!”


Quero escrever hoje um texto sobre a Giulia, minha primeira filha. Quero porque quero. Quero porque é justo que escreva, neste tempo em que estou escrevendo tanto. Ela, certamente, é um dos meus belos ‘textos’ na vida, representa uma conquista imensa, a derrubada de milhares de barreiras internas, na busca da conquista de um sonho. Eu já contei isso em outro texto (Eu sou Mãe Malu-a), mas não falei dela o suficiente. Nunca vai ser o suficiente, mas eu vou tentar minimizar isso, com estes escritos de hoje.

Giulia é minha primeira filha. Eu a adotei em 1996, logo que ela nasceu. Desde então, tenho vivido com ela momentos mágicos, plenos de felicidade materna, de cumplicidade imensa. Tenho certeza que fazemos uma história maravilhosa de um vínculo mãe e filha, que nem todas as pessoas conseguem, mesmo com filhas e filhos biológicos. Eu lembro cada detalhe, da espera ao momento de encontro com ela. Quando a busquei no hospital, por exemplo, lembro do estremecimento no momento em que ela me foi entregue, a saída do hospital, o medo que alguém me parasse e me dissesse que eu não poderia trazê-la; depois, a chegada em casa, o dia a dia, o quanto que eu me mobilizei e me envolvi com ela.

É interessante que, com filho adotivo, também acontecem algumas coisas inexplicáveis. Por exemplo, nos primeiros tempos, eu sentia o que ela sentia. Ela tinha diarreia, eu tinha diarreia.
Ela dormia, eu tinha que dormir. Ela chorava de cólica, a barriga ficava meio dura e eu começava a sentir cólica também. Fiquei meio que hipnotizada, meio bêbada de felicidade por ter conseguido, enfim, ter a minha filha ao meu lado. Assim foi cada dia, foi cada coisa que vivemos. Hoje, Giulia está com 14 anos. É uma adolescente, uma menina moça, como diziam quando eu era criança. É lindo vê-la crescendo. Ontem, entrei no seu quarto e me assustei com o fato de que ela está do tamanho de uma adulta. Tudo passa tão rápido na vida. Depois de um tempo, passa mais.

Giulia é uma filha exemplar. Hum, não sei de deveria estar escrevendo isso. Deveria, sei que ela vai ler, mas sei também que nosso cotidiano, nossa convivência é de cumplicidade, o que lhe dá a clara noção de que não a idealizo. O tempo todo vou tentando orientar aqui e ali, para ajudá-la a se preparar para as situações de maior autonomia. Temos nossos entreveros de cotidiano de mãe e filha, diferenças no tempo, de geração a geração. Ai, o lugar de mãe é o lugar da adulta-adulta, de supervisão da vida, de planejamento, de orientação, de tentar projetar o futuro.... não é nada fácil, mas quando se está do lado de lá aquele parece ser o mais complicado.

Fico então me lembrando do conceito de espelho, do Jacques Lacan, que venho trabalhando há mais de 20 anos. Com a Giulia, vivi muitas fases de espelhamento e fui me dando conta o que isso, verdadeiramente, significa. Tem sido tudo emocionante. Por exemplo, eu sempre dizia para os alunos de Comunicação e Psicologia que, nos primeiros tempos, o encontro de olhares entre mãe e filho é forte, intenso, é espelho, mas que o bebê não tem consciência do que está acontecendo. O momento vai criando um substrato de informações no inconsciente, informações que vão dar significado para uma série de situações da vida do sujeito, mas não é porque a criança tenha consciência do que está acontecendo. Mesmo a mãe, pelo embevecimento da cena, tantas vezes perde um pouco o senso, a racionalidade. Ali, no vínculo mágico, pleno, parece que tudo é possível.

Então, para exemplificar, eu sempre dizia que, quando a criança dá os primeiros sorrisos para a mãe, ela não está sorrindo. Ela está apenas imitando os movimentos faciais da mãe, que é o que consegue fazer. Isso não é um sorriso consciente, desses que a criança daria se pensasse: “Ah.. essa é minha mãe querida, eu gosto dela, vou sorrir”. Não. Não é por isso que esboça o sorriso. É imitação, espelhamento puro. O problema é quem diz isso para as mães que, loucas, se enchem de razão e felicidade, quando olham a criança e afirmam, do alto de sua autoridade materna: “Sorriu pra mim. Ela sorriu pra mim!”. Bem, então, imaginem o que eu senti a primeira vez que a Giulia ‘sorriu pra mim’. Sim, porque embora me lembrasse da teoria, eu mandei o Lacan às favas, quando a minha primeira filha esboçou o primeiro sorriso. “Eu sei, ela sorriu pra mim!”, afirmava internamente com convicção, mesmo sabendo racionalmente que não era. Ficava imaginando meus alunos olhando a cena. Eles, sim, sorririam pra mim e provavelmente perguntariam, internamente, onde foi parar toda aquela teoria.

A cena é emblemática, para a vida de qualquer um. Com a Giulia – e com os outros também – fui entendendo o que é, mesmo, de fato, conviver com um espelho. Ir se vendo no outro e se moldando, tentando se ajustar, tentando oferecer a melhor imagem. Quando me separei do pai da Giulia, depois de um casamento de muitos anos, eu pensava muito que queria que os meus filhos me vissem com a imagem de uma mulher que lutou pra ser feliz, que enfrentou as dificuldades, pra não se acomodar ao sofrimento, pra não aceitar qualquer coisa, por conveniência. Preocupava-me muito, em certo sentido, de modo especial, com as meninas: “Que imagem de mulher elas vão ter? Que imagem sobre o amor elas vão ter, tendo a mim como espelho?” Eu me preocupo com isso até hoje. Estou o tempo todo tentando acertar, tentando ser uma boa mãe, um bom espelho-Mulher, que orienta, que demonstra, vivendo, que a vida vale a pena, que o amor vale a pena, que é preciso critério nas nossas escolhas, paciência porque as coisas não são fáceis, cumplicidade e aceitação do Outro. É preciso também o fortalecimento de ‘si mesma’, para conseguir viver os revezes do amor, porque ‘nem tudo são flores’. Há que aprender a conviver e, em qualquer tempo, acreditar que o substrato amoroso, aquele que nos faz vibrar de alegria ao ver o outro, pode nos ajudar a ajustar os detalhes, a ceder e a encaixar a existência na existência do outro, e que isso é ‘o melhor’ da vida.

Lembro de um dia, a Giulia tinha três anos. Estávamos juntas, sozinhas, quando, no meio da conversa, ela me olhou e me disse: “Mãe, eu sou um pouquinho mulher, né?”. Eu respondi afirmativamente, emocionada pela manifestação de consciência de que ela estava crescendo, semelhante a mim, o desencadeamento da construção do ‘ser feminino’ nela, a partir do nosso encontro. É uma graça a nossa semelhança, em tantos aspectos. Minha Giulia é meu espelho, literalmente. Com dois anos, levei-a para a Itália, pela primeira vez. As pessoas me paravam na rua, para comentar a semelhança física. Ainda hoje, chama a atenção o quanto ela se parece comigo. Isso sem falar nas semelhanças do jeito de ser. Bem, essas, então, nem se fala. Isso chega ao ponto de, em algumas situações, ela se comparar a mim – o que me deixa furiosa – e, quando vou repreendê-la, ela mesma dispara a frase: “Está se comparando a mim?”. Putz, como é difícil explicar que lugar de mãe é lugar de mãe...como é difícil entender isso também.

Mas acho que a fala mais marcante da Giulia, para mim, foi dita em uma noite em que eu a fazia dormir. Sentada ao lado de sua cama, acompanhava aquele momento em que o sono começava a chegar. Ele abriu os olhos e me perguntou: “Mãe, você sabe porque eu não fui ser filha da mulher da barriga aquela que eu nasci?”. Eu respondi, perguntando: “Por que, filha?”. Ela então, disse: “Eu não pedi para o Pai do Céu para ser filha dela. Eu pedi para ser sua filha!”. Bem, uma frase como essa, dita por uma criança da gente, vale a vida inteira.

Hoje Giulia é um pouco mais Mulher. Uma menina moça. Uma adolescente típica. Apaixonada pela dança, pelo “Buteco de Dança”, pelo Grupo Gaia, pelos Beatles e por suas amigas e amigos. Já perdi as contas de quantas vezes quase inundei teatros, emocionada com as apresentações de dança em que ela participou. Giulia dança muuuuuiiittooo. Ela já tem sua tribo e percebo que é bastante querida entre seus pares. Vejo com alegria que o tempo a está fazendo cada vez mais autônoma, feliz e segura. Até porque, ela sabe, que o que nos une é um amor pra vida inteira, é algo que supera qualquer desentendimento cotidiano, qualquer diferença. Sabe que, em qualquer tempo, pode contar comigo e que vou procurar, sempre, ser seu porto seguro, no que me é permitido, nessa minha condição de mãe imperfeita, mas plenamente feliz por ser mãe dela.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Coisas de Malu Mulher 2 - Personagens do Cotidiano

Essa semana fui ao ‘salão de beleza’ pintar o cabelo. Sim, pintar o cabelo. Costumo dizer que, enquanto houver tinta no mercado, meus cabelos não ficarão esbranquiçados. Eu sei, é genético. Eu sei, não quer dizer que estou ficando velha caquética (esse fato sozinho, pelo menos, não quer dizer isso), mas, neste momento da minha vida, ainda, exibir cabelos brancos, como diriam meus filhos: “não eras..” (esses adolescentes inventam cada uma, nas suas rupturas cotidianas... em geral, seguem lógica “abandonaram a gramática”, enfim, vale para o momento...’não eras’).

Acontece que eu não tenho muita paciência para os ambientes esses, de ‘salão de beleza’. Vou como compromisso feminino, todas as semanas, para fazer unhas, cuidar detalhes do corpo, que considero importantes. Coisas da Malu Mulher, cuidados comigo mesma, mas, me incomoda a futilidade de algumas pessoas, assim como a sensação que algumas mulheres têm de que estão em um confessionário. Elas contam intimidades, de todos os tipos, fatos marcantes sobre seus relacionamentos amorosos, sexuais, e outros detalhes da vida que, normalmente, não divulgamos. Esbanjam um não constrangimento com o qual eu não consigo partilhar. Há detalhes da vida íntima, que são de arrepiar, e que elas contam para a manicure, em alto e bom som, para todo mundo ouvir, inclusive eu, que não tenho nada a ver com isso, que, em muitos casos, não as conheço. Fico pensando, meu Deus, como as pessoas se expõem dessa maneira?

Bem, há outras que fazem questão de parecerem felizes. Exageradas. Escandalosas. Gritam. Bah. Eu não suporto pessoas que falam gritando. Sou italiana e, muitas vezes, em casa, com a família, se forma uma ‘chiacchiera’ (conversa) em que falamos mais alto um pouco – em casa, junto a pessoas com quem temos intimidade...conversa particular...espaço de intimidade. Nunca em público. Penso que o grito é um descontrole. De algum tipo. O grito é uma desproporção. Há momentos em que gritamos e o grito faz sentido, mas só na intimidade, quando esse grito não é de agressão, mas de soltura dos sentimentos, de sensações. Mas, óbvio, em espaços públicos não temos que sair soltando nossas emoções e sentimentos, sem constrangimento. É preciso um mínimo de recato. É, talvez eu esteja ficando velha... não sei, mas não me acostumo com certas coisas. Vou contar um episódio. Há outros que depois eu conto.

O primeiro deles foi no ‘salão’. Eu exausta, tinha ido pintar o cabelo porque estavam aparecendo os brancos e eu tinha a previsão de uma reunião importante de negócios – sim, de negócios também, claro que não me arrumo só pra isso... me arrumo para o cotidiano de vida, como Malu Mulher. Bom, mas naquele dia, eu tinha ‘fervido’ o dia inteiro, nesse janeiro tórrido de Porto Alegre. No final da tarde, esperava pacientemente – não muito – a tal da tinta fazer efeitos nos meus cabelos. Aí entra no salão uma criatura, aos berros, cantando – jurando que cantava – uma música do Paul McCartney. Ela disse que era. Eu não tenho ideia que música poderia ser. O timbre de voz altíssimo e sem ritmo associado a um inglês mal pronunciado fazia daquele som tudo menos música, que dirá do Paul McCartney. Quer dizer, o quadro da dor. Eu exausta, querendo que o tempo passasse logo para voltar para casa descansar e a louca criatura aos brados, achando que cantava.

Não satisfeita de entrar assim no ‘salão’, ela se aproximou de mim – que abri os olhos, até então cochilava, viajava dentro de mim mesma, nesse tempo da ‘tinta’. Sem nenhuma preocupação sobre se estaria ou não agradando, ela sorria muito e me dizia: “Sabe, eu fui ao show dele e não consigo parar de cantar!”. Fiquei, então, agradecendo por não ser sua vizinha. Meu Deus, estamos em janeiro, o show foi em novembro, se não me engano. Se essa pessoa ‘canta’ há um mês e meio, dois meses... é um caso de saúde pública. É preciso chamar a defesa civil, os bombeiros – hum, os bombeiros seriam uma boa ideia... mas isso eu conto em outro texto, risos.

Eu não respondi nada. Por sinal, essa senhora tem essa habilidade: me emudecer. Ela já conseguiu isso, em diversos momentos, aqui no bairro, mesmo sem perceber – sim, porque ela parece não fazer por mal. Só faz porque é o seu jeito, assim, desmedido, descuidado com o outro. Ela chega, grita, pergunta, não espera resposta e, mesmo que espere, eu não respondo. Prefiro não responder. Quando percebo que não vou manter a cordialidade costumeira, prefiro não responder. Melhor assim. Então, diante dela, normalmente, emudeço. Melhor assim. Não quero maltratá-la. Se for dizer o que penso... bem, ela não entenderia, talvez se ofendesse. Não quero isso. Só queria que ela não gritasse, perto de mim.

Outra vez, eu vivia uma situação difícil com um dos meus filhos. Ela viu e me perguntou: “O que ele tem? Por que ele faz isso?”. O momento não era de explicações. A situação também não. Todas as outras pessoas viam meu sofrimento com a cena e se limitavam a silenciar. Ela não, gritava. Eu emudeci. Tempos mais tarde, num rasgo de lucidez, ela veio falar comigo e me pediu desculpas por ter perguntado. “Eu não devia ter perguntado”. Eu me assustei com a manifestação, que não parecia dela e, também, emudeci. Depois disso, muitas outras vezes eu a vi gritando e sempre procuro me afastar, fazer de conta que não ouço – o que seria impossível. Dessa vez, no salão, com a música ou suposta música... é que foi mortal. A fase final do momento de relaxamento, para pintar os cabelos, foi um martírio, com uma trilha musical que mais parecia de um filme de terror...eu não sei dizer o que ela cantava, acho que ninguém saberia. Eu fiz o de sempre, no caso dela: emudeci.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Para sobreviver no caos


A maioria das pessoas que eu conheço já se deu conta que vive diante de um caos de atividades, um mundo de solicitações importantes, que atormenta, estonteia e, muitas vezes, desorienta a gente. Escrevo este texto, então, para compartilhar algumas pistas que obtive de parceiros teóricos sobre como conviver com o caos cotidiano, diante de tantas exigências. Eu tenho dito que um dos problemas da vida é que tudo é fundamental e o outro é que existem “fundamentais” demais. Então, o que fazer? Como sobreviver?

Em primeiro lugar, parece-me importante entender que essa sobrecarga não é uma característica minha ou sua, mas do sistema em que a gente vive. Para obter condições mínimas de existência, a gente acaba se envolvendo em uma trama de afazeres e, depois, se estressa porque sente dificuldade de dar conta de todos eles. Uma primeira pista vem da filosofia oriental, que nos oferece o conceito de “presença plena”. Quer dizer, é importante estar plenamente presente no que se está fazendo, enquanto se está fazendo. Por exemplo, enquanto eu escrevo este texto, não posso resolver nenhum problema ou realizar nenhuma outra tarefa do dia-a-dia. Só posso escrever este texto, plenamente, intensamente, procurando entregar-me à escrita e a você, leitor, da melhor maneira possível. Presença plena. Fazer uma coisa de cada vez, procurando dedicar-se inteiramente a isso.

Há anos venho experenciando esta prática e percebendo seus resultados em todas as áreas da minha vida, no desempenho profissional, nas relações familiares, de amizade, amorosas. O poeta Fernando Pessoa também ensina: “Para ser grande, sê inteiro: nada teu exagera ou exclui. Sê todo em cada coisa. Põe quanto és no mínimo que fazes. Assim em cada lago a lua toa brilha, porque alta vive”.

Outra orientação é não se ocupar (demais) com o que não tem solução – ou, mesmo com problemas cuja solução não está nas nossas mãos. Quantas vezes sentimos desejo de mudar o rumo de nossas vidas, de ver resolvida alguma pendência, mas, na verdade, o encaminhamento disso depende de outras pessoas. Depende de que alguém nos selecione para uma vaga no emprego, que alguém nos ame como nós o amamos, depende de que o nosso trabalho seja reconhecido por outras pessoas... enfim...depende dos outros. Nestes casos, o que podemos fazer é valorizar a nossa parte, dedicarmo-nos para que haja condições favoráveis para a solução, mas não podemos fazer tudo. Não há como definir o jogo, sozinhos. Precisamos acreditar, mentalizar positivamente e colocarmo-nos prontos para o momento da solução. Aí, vale “entregar para o universo”, para o que eu chamo de “conspiração cósmica”. Ajuda, nestes momentos, produzir outras coisas, ocupar-se com produções agradáveis, que possam nos colocar no mundo como pessoas alegres, que investem no possível. Esperar com alegria, aceitar o movimento cósmico e acreditar no devir, no que está para vir a ser. A pior atitude, nestas situações, é ficar remoendo, amargurando-se pela espera e travando a vida... isso nos põe em desvantagem, cria energia bloqueadora.

Proponho, então, caro leitor, que você se dedique inteiramente a uma coisa de cada vez e não invista tempo em aspectos da sua vida, cujo andamento não dependem de você. Mentalize e espere. Produza e dedique-se ao possível, mesmo que pareça, momentaneamente, pouco. O que fizer, bem feito, vai abrir caminho para outras realizações. E, para facilitar, seja afetivo, espere com doçura. O “universo” tende a reconhecer produções ternas, com valorização e realizações. Boa sorte!

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Jabuticaba Morena


No bar da faculdade, eu saboreava lentamente meu tradicional pedido de fim de tarde: uma salada de frutas e um iorgurte de mel. Uma delícia. Por um instante, senti entre os gostos um sabor muito peculiar, particularmente especial, para mim. Sem pensar, perguntei ao aluno que me acompanhava: “Você sabe onde posso encontrar jabuticabas?” Ele, atônito com a pergunta que parecia surgir do nada, em meio às nossas conversas acadêmicas, respondeu lacônico: “N-não!”. Se você souber onde tem, você me avisa?”, indaguei. Mais um vez, titubeante: “Cl-aro.”Você não vai esquecer?”. Ele respondeu: “Lógico que não”.

Ele provavelmente não tenha entendido. É que jabuticaba é minha fruta preferida. Mais que isso, é minha fruta de infância, capaz de acionar lembranças tantas, de tempos em que vivi no interior de São Paulo, morando na casa dos meus avós, onde havia três pés desta fruta – um deles, meu avô me deu. Pra quem não conhece, posso dizer que é uma fruta redondinha e preta, que, quando você morde, faz ploc e se abre, derramando um líquido branco e viscoso...hum... uma delícia.

Cresci no interior de São Paulo, região noroeste do Estado, onde fica Guarantã, cidade em que nasci. Lá a produção de jabuticaba é farta. Em grande parte dos quintais da pequena cidade, há jabuticabeiras. A maioria fica carregada de frutas entre os meses de setembro e outubro, mas há algumas especiais que produzem jabuticaba praticamente o ano todo. Mal termina uma florada, que frutifica, e logo começam surgir novas florzinhas amarelas, ainda no período em que os passarinhos atacam a árvore, para aproveitar as frutas que sobram e murcham no pé. Aquelas difíceis de alcançar. A minha árvore é assim, sempre produzindo, sempre florescendo, sempre dando frutos... Ela está tão longe e, ao mesmo tempo, tão perto, tão dentro de mim.

Fico pensando que talvez eu tenha aprendido a viver com a jabuticabeira. Tenho eu também as minhas fases. Tem épocas que pareço florir, me encho de vida, um certo aroma de produção de vida, vou me sentindo renovando, envaideço-me. Tento me ajeitar com o sentimento de que a vida vale a pena e que é possível reviver a florada, remoçar na produção de flores, atividade que me é tão cara – mas isso já é assunto pra outro texto. Há, ainda, momentos em que consigo fazer dessas flores um amontoado de frutos, que vão se aglomerando, se espremendo na produção do dia, deixando esta árvore produtora sobrecarregada com o que produz... São doces as jabuticabas, assim como são os frutos que produzo na vida. Ao menos, tento que sejam assim. Doces e cheirosas. Espero sempre que a minha produção distribua um certo aroma, contagiante, que possa envolver as pessoas, faze-las sentirem-se motivadas, interessadas. Vivo da Comunicação, da interação com seres outros. Intenciono, portanto, o contágio das emoções derramadas, que possam tocar os afetos, afetar, produzir movimento.

Só que há também situações em que este mesmo doce exalado parece atrair abelhas, seres que vão produzindo zunidos, que se aproximam e vão meio que sugando o néctar da produção. Muitas vezes, eu me deparei com elas na jabuticabeira que meu avô me deu. Houve até mesmo um certo dia em que despenquei da árvore, com medo de ser picada, meio assustada com o contato, intimidada pelo risco de ser machucada. Fiz um corte na perna, que me rendeu uma cicatriz pra vida toda. Uma dessas marcas permanentes dos medos que a gente vive, medo de ser machucada, medo de quem vem buscar o mel, o mais doce da nossa existência. O leitor certamente já percebeu que não estou falando só da jabuticaba...Falo do meu medo das abelhas, abelhas-abelhas, e abelhas-pessoas.

Depois, há tempos em que me sinto murchando, com os frutos secando. Parece que perco as forças. Passo algum tempo assim. Vou meio que me escondendo, constrangida por achar que não estou oferecendo o melhor produto. Fico olhando as pessoas que se aproximam e penso que posso oferecer mais. Talvez, de algum modo, a jabuticabeira também tenha esse constrangimento circunstancial. Ela deve ter me visto, tantas vezes, embaixo de seus galhos, com olhos de desejo, entristecida por não vislumbrar nenhuma fruta, meio perdida nas lembranças de outras situações.

O que consola é compreender o ciclo do tempo. Acho que herdei da minha jabuticabeira, também, a capacidade de renovar. Aos poucos, passa o tempo de entristecimento, surgem brotos... os nozinhos secos vão dando lugar a pequenas flores e, com elas, renasce a esperança de sentir o gosto, de reencontrar o brilho e o viço das doces morenas jabuticabas. Sabor de infância. Sabor de mocidade, de laços afetivos intensos, da segurança do relacionamento com meus irmãos, com quem aprendi, entre tantas coisas, a dividir jabuticabas, a dividir o doce da vida e os momentos de estripulias, as armações para conquistar as maiores, as bitelas, como chamávamos. Deixo, por fim, um apelo singelo. Se o leitor souber, onde conseguir jabuticabas aqui no Sul, por favor, me escreva (malu@pazza.com.br). Quem me dá jabuticabas ganha minha amizade pra vida toda. Não sei o que você pensa disso, mas sei que é uma das melhores coisas que tenho para oferecer....beijo.

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Por que Margaridas Brancas????

Por que este blog se chama Margaridas Brancas? Por que eu tenho feito Oficinas Margaridas Brancas, no Brasil e no Exterior? É uma história linda...eu estou escrevendo... aguardem! Beijos

Porque os dias não são iguais...


Um texto retomado, de uma sensação revivida... Escrevi este texto há alguns anos, mas, em algumas coisas, principalmente na filosofia de vida “porque os dias não são iguais”, ele continua válido.

Há algumas frases que às vezes nos vêm à cabeça, sem que saibamos exatamente de onde elas surgem. Uma destas, há algum tempo me assaltou: “Porque os dias não são iguais é que a vida faz sentido!”. Eu estava num dia estupendamente feliz, (assim como foi o do Natal passado). Destes em que a gente lava a alma. Havia recém desligado o telefone, de uma ligação que esperara muito tempo, em que ouvira coisas que queria ouvir havia muito tempo...”Porque os dias não são iguais é que a vida faz sentido!”. Naquele dia, havia um gosto indescritível de espiral do tempo, dessas voltas que a vida dá e nos coloca onde sempre quisemos estar. E a frase passou o dia ecoando em mim, como uma oração de graças e, ao mesmo tempo, de alerta.

Fico pensando que essas inspirações, essas ofertas generosas do Universo, trazem sempre muita sabedoria. Sabedoria simples, dessas que parecem filosofia de bar, de fim de noite, quando inebriados e alegres começamos a desvendar os grandes mistérios da vida. Naquele dia, eu estava bêbada de alegria, de prazer de ouvir o que sempre quisera ouvir. Outro defeito de fabricação da Malu: alegria por migalha, frases, palavras... eu, literalmente, sei ser feliz com pouco. Isso é bom e não é. Naquele dia, saltitava e, simultaneamente, compreendia que tudo fazia tanto sentido, porque eu tinha vivido outros dias. Entendia que o gosto daquele momento era resultante não apenas do momento, em si, mas também de outros tão diferentes. Outros momentos de espera, de incerteza, alguns de tristeza. Momentos de outros dias.

Acho que é preciso saborear os dias e até mesmo saborear as esperas. Sim, porque elas são, na verdade, promessas de devires, de momentos que devem vir a ser, em outros dias. Não há que se lamentar, apenas esperar. Esperar e acreditar. Construir a espera como promessa. Ir acreditando, para fazer da espera um acontecimento prometido. Um tomara que virá a ser. O Universo é generoso para quem sabe que a espera guarda o acontecimento futuro. Ele recompensa a espera, quando a espera não é ‘expecta’, como eu costumo dizer, quando a espera não espeta, não fere, quando a gente não se deixa ferir. É importante saber vivê-la. Não esbravejar contra o Universo e, principalmente, não entristecer-se mais da conta. Taambém não podemos nos dependurar na espera e transformá-la numa amarra que nos paralisa...expecta, nos prende, nos impede de viver o que há para ser vivido... o que se oferece como possibilidade. Enfim, a vida continua passando... viva! Quer dizer, uma espera, uma saudade, têm que ser vividas como diria o Drummond: “Uma ausência que está em mim”, como me referi no outro texto (Quando os filhotes partem). E isso precisa ensinar que, remoendo esse doendo de saudade, remexendo, sem mergulhar no entristecimento, a gente constrói o devir (quem sabe?)como realização e, não, como reforço do que não é possível.

“Quem espera sempre alcança”, diz a sabedoria popular. Penso que, na verdade, quem sabe esperar sempre alcança e, principalmente, quem acredita no resultado da espera pode alcançar... E, se não alcança, é porque o universo, o Grande Universo, decidiu assim. Aí não há o que fazer. No dia do telefonema inebriante, lembro ter dito para quem me ligou que sei esperar. Que o mesmo Universo que nos colocou frente a frente, bem longe, em outras praias, em outras terras, em outros tempos, um dia, um outro dia, vai me devolver o acontecimento, em outra cena da espiral do tempo, em outro giro da roda da vida, porque o acaso, ou o que se acredita ser acaso, não existe. Há, na verdade, conspirações, sincronicidades, que aproximam e afastam e voltam a aproximar seres que se interessam, que se merecem, que se aquecem de afetos e, afetivados, retornam sempre, ainda que seja só nas lembranças, ou nos sonhos, por um tempo. Porque os dias não são iguais é que a vida faz sentido! É só esperar...não esperar sentada, não esperar paralisada. Esperar vivendo. Esperar sendo feliz com o que há para viver. Esperar com a alegria pelo vivido, sem medo, sem pressa, sem expectativa disso ou daquilo. Esperar como quem guarda da cristaleira da memória uma relíquia delicada.